Estamos no mês de setembro e com ele surge na mídia desde 2015 a campanha Setembro Amarelo, de conscientização e prevenção do suicídio. Mas o que esses anos de campanha nos mostram sobre a efetividade da campanha? A situação do suicídio no Brasil vem melhorando ou houve avanços das políticas públicas nesses últimos anos? É isso que tentaremos responder neste artigo.
O suicídio vem em alta no Brasil nessas últimas duas décadas, com aumento de 3,7% ao ano na taxa de suicídio da população geral. Entre 2000 e 2019 o Brasil acumula um aumento de 43% na taxa de suicídio, ante uma redução global de 36% e um aumento menor nas Américas, de 17% no mesmo período. A faixa etária que mais cresce em suicídios é a de jovens entre 10 e 24 anos, com 6% de crescimento ao ano (29% entre 2011 e 2022). Esses números são realmente estarrecedores e preocupantes, veja o gráfico do IPEA.
Dois estudos jogaram uma luz sobre a tendência de aumento de suicídios no Brasil e sua relação com a campanha Setembro Amarelo, iniciada em 2015. O primeiro estudo, de 2023, foi publicado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia e os resultados foram confirmados por um estudo deste ano publicado por pesquisadores de diferentes universidades (USP, UFSM, UFRGS, UFJF). O primeiro estudo analisou mortes por suicídio de 2011 a 2019 e o segundo entre 2000 e 2019.
Eles reuniram os dados de suicídio do cadastro nacional do SUS (DATASUS), excluindo os anos de pandemia (2020-2022). Depois fizeram análises para averiguar se houve um aumento a partir de 2015, quando se instituiu a campanha Setembro Amarelo, analisando inclusive as taxas de suicídio nos meses subsequentes a setembro de cada ano. Os resultados não permitem inferir uma relação de causa e efeito entre a campanha e as mortes, mas demonstram de forma inequívoca que a campanha Setembro Amarelo não tem sido eficaz na prevenção do suicídio, pelo contrário, houve um aumento expressivo de mortes por suicídio nos anos seguintes à campanha, como demonstram os dois estudos.
Vejamos então os resultados do segundo estudo, mais atual e que abrange um período maior de 19 anos. Nesse período foram registrados no país quase 200 mil suicídios (precisamente 195.047), com maior aumento em indivíduos entre 20 e 29 anos de idade (63% de aumento relativo frente a 57% para a população geral no período estudado).
Em relação à distribuição geográfica, raça e escolaridade, os dados também chamam atenção: o ritmo crescente de suicídios na região Sul do país é quase duas vezes mais alto do que na região Nordeste e Sudeste (figura 1). Brancos, pretos, pardos e indígenas apresentaram aumento da taxa de suicídio, apenas asiáticos tiveram uma diminuição. Menor escolaridade (entre 8 e 11 anos de educação) também foi associado ao aumento nas taxas.
Em relação à campanha Setembro Amarelo, os autores usaram um método de análise regressiva para tentar estabelecer uma relação nas taxas de suicídio ao longo do tempo com a campanha (RDD – regression discontinuity design). Por ele os autores conseguiram calcular o nível de significância estatística das mudanças nas taxas de suicídio e a variável Setembro Amarelo.
Apesar da tendência de aumento gradual da taxa de suicídio ao longo do tempo, a mudança na inclinação da curva de suicídio observada a partir do ano de 2015 indica uma aceleração estatisticamente significativa no crescimento (APC2000-2015, 1,67%; APC 2015-2019, 4,24%; Figura 2).
Quando analisado por trimestre (intervalo de três meses) (Figura 3), o primeiro trimestre não apresenta um ponto de ruptura (APC 2000-2019, 1,86%). Dito isso, o ponto de interrupção no segundo trimestre ocorreu em 2016 (APC 2000-2016, 1,67%; APC 2016-2019, 5,78%), no terceiro trimestre em 2015 (APC 2000-2015, 1,61%; APC 2015-2019, 4,86%) e no quarto trimestre em 2014 (APC 2000-2014, 1,75%; APC 2014-2019, 3,79%).
A Regressão dos resultados de descontinuidade (RDD (Fig. 4A) apresentou um excelente ajuste (R2 0,980 com um R2 ajustado de 0,977). Eles detectaram uma interação significativa entre o ano de início da campanha e o tempo (β = 0,1939, SE = 0,04282, t = 4,527, p < 0,001). A análise de efeitos marginais indicou uma mudança significativa na taxa de suicídio ao longo do tempo em relação à implementação da campanha. Antes de 2015, a taxa de crescimento do suicídio foi estimada em 0,08088 (95% CI [0,07009, 0,09168]) suicídios por ano por 100.000 habitantes. Após o início da campanha pós-2015, a taxa de crescimento mostrou um aumento para 0,27474 (95% CI [0,06380,0,48569]) suicídios por ano por 100.000 habitantes. Nenhuma das covariáveis analisadas (desemprego, renda per capita, divórcio e inflação) explica significativamente o resultado e os principais resultados permaneceram inalterados após o ajuste (Fig. 4B). Visualmente a linha vermelha no gráfico indica o aumento expressivo após a campanha, o que se mantém após a correção pelas covariáveies analisadas, que não modificaram a inclinação da linha.
Os autores também realizaram uma análise para testar os efeitos da distância relativa do mês de setembro e se os efeitos da distância relativa de setembro seriam diferentes antes e depois do lançamento da campanha (fig. suplementar 9 – curva vermelha pré-campanha de 2015; curva azul após 2015). Essa análise revelou um efeito principal da distância relativa de setembro (F = 5,2452, p < 0,05), o que significa que quanto mais distante de setembro, menor a incidência relativa de tentativas de suicídio. Mais importante ainda, verificou-se uma interação entre a distância e o início da campanha (F = 6,0972, p < 0,05), mostrando que esse efeito se tornou mais forte após a campanha do Setembro Amarelo. Essa análise reforça as possíveis ligações entre o início da campanha e a aceleração das taxas de suicídio na população brasileira, uma vez que se espera que os efeitos da campanha sejam mais fortes no mês seguinte a setembro, embora possam continuar por muitos meses.
Os resultados do estudo alertam para ineficácia de campanhas de prevenção ao suicídio baseadas apenas na informação e na mídia, corroborando outras evidências na literatura, de que campanhas que dependem exclusivamente de publicações na mídia carecem de eficácia. Embora elas passem a impressão de que governos e a sociedade civil estão empenhados na implementação de estratégias de cuidado e na melhoria da situação psicossocial da população, somente mudanças estruturais e mudanças em diferentes níveis de cuidado são capazes de produzir efeitos benéficos e sustentáveis para a redução nas taxas de suicídio da população.
A precoupação dos autores é com o chamado efeito Werther ou suicídio por imitação, uma vez que é descrito na literatura que a simples menção ao suicídio possa criar uma situação para alguns indivíduos predispostos a se tornarem mais propensos ao ato suicida. Por isso eles enfatizam a necessidade de campanhas que direcionem as pessoas vulneráveis a sistemas reais de cuidado, como intervenções comunitárias que aumentem o acesso aos cuidados em saúde mental.
Uma preocupação central em países de baixa e média renda como o Brasil têm sido a relação do suicídio com a violência estrutural e as assimetrias de poder entre diferentes estratos da população. Não por acaso mulheres, idosos, jovens, não-brancos, de menor renda, migrantes e residentes em localidades menos urbanizadas estão nos grupos dos mais vulneráveis e em maior risco para o suicídio. Entre os indígenas brasileiros, o risco de suicídio chega a ser 4 vezes superior ao da população geral, associado a uma violenta miscigenação e ao desenvolvimento econômico que afetam sua cultura e sua cosmologia, prejudicando suas identidades. Essa “patologia do poder” é oriunda do processo histórico colonial e da violência que essas populações vem sendo submetidas ao longo dos séculos.
Princípios participativos, inclusivos e democráticos são necessários como fatores de proteção à vulnerabilidade psicossocial e ao suicídio, não sendo suficientes somente fatores individuais de mitigação do comportamento suicida.
Políticas públicas que visem combater as violências estruturais e a opressão que mantém o padrão de poder na sociedade, principalmente as desigualdades relacionadas à sexualidade, gênero e raça, necessitam de prioridade frente às condições meramente materiais, que possuem a sua importância, mas que por si só não agem na inversão da lógica colonial.
Portanto, para além de campanhas midiáticas de massa, precisamos de atuação preventiva no território, no chão das comunidades e em conjunto com as populações mais vulneráveis, por mais participação social, mais democracia, mais direitos e cidadania.
Uma transformação que no cenário atual, de aumento das taxas de suicídio, nos parece distante.
Artigo: Damiano RF, Beiram L, Damiano BBF, Hoffmann MS, Moreira-Almeida A, Rück C, Tavares H, Brunoni AR, Miguel EC, Menezes PR, Salum GA. Associations between a Brazilian suicide awareness campaign and suicide trends from 2000 to 2019: Joinpoint and regression discontinuity analysis. J Affect Disord. 2024 Nov 15;365:459-465. doi: 10.1016/j.jad.2024.08.134. Epub 2024 Aug 24. PMID: 39187205.
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