“Estamos tratando de doenças que atingem a emoção, o sentimento e a relação entre as pessoas, somente por essas vias é que conseguiremos de fato a mudança”.

Entrevista com Dr. Leonardo Palmeira, psiquiatra do Programa Entrelaços do IPUB/UFRJ, que escreveu o manual, lançado este ano pela editora Planmark.

Portal Entendendo a Esquizofrenia: Como surgiu a ideia de fazer um manual para profissionais de saúde e qual a proposta dele?

Dr. Leonardo Palmeira: Nesses 18 anos que trabalhamos com pacientes com transtornos mentais graves, particularmente a esquizofrenia, e seus familiares ficou sempre a impressão da falta de informação ser um dos principais obstáculos à recuperação. Em 2009 lançamos com esse objetivo o livro ‘Entendendo a Esquizofrenia’, em 2013, já com a experiência do Entrelaços no IPUB, lançamos a segunda edição do livro ampliada para atender aos próprios pacientes, incluindo depoimentos de experiências pessoais de recuperação e um capítulo focado neste tema. Porém sempre ficou a sensação de que faltava algo. É comum ouvir das famílias com quem trabalhamos a queixa de que nos serviços onde se tratam não há informação sobre os transtornos mentais, que muitas vezes não sabem o diagnóstico, que profissionais evitam falar diretamente sobre o assunto, há pouco apoio neste sentido para as famílias. Em nosso programa no IPUB já recebemos profissionais de saúde de outros serviços e hospitais para conhecerem nossa metodologia de trabalho, já auxiliamos na criação de grupos de psicoeducação, mas esse trabalho ainda é muito tímido e limitado, porque nossa equipe também é reduzida e já temos bastante envolvimento com as famílias e os pacientes. Então a ideia do manual é apresentar o conteúdo que utilizamos nos seminários de psicoeducação do Programa Entrelaços para os profissionais de saúde mental que trabalham em CAPS, hospitais, ambulatórios e outros serviços poderem utilizar esse conhecimento junto às famílias e aos pacientes.

Portal Entendendo a Esquizofrenia: Como ele pode ser utilizado no trabalho com as famílias?

Dr. Leonardo Palmeira: O manual é dividido em módulos e no início de cada um deles colocamos o número de sessões necessárias e os objetivos com as famílias. Ele pode ser utilizado no formato de seminários, ministrados às famílias pelos profissionais de saúde que se dispuserem a fazer esse trabalho, como ocorre no Entrelaços, ou ele pode ser utilizado como complemento às sessões de terapia em grupo, como, p.ex., grupos de familiares ou de pacientes que já ocorram nos serviços. A nossa intenção é que o material possa contribuir para a atualização dos profissionais de saúde que tratam pessoas com esquizofrenia, municiando-os de informações baseadas nas melhores evidências científicas e que possam ser passadas às famílias e aos próprios pacientes, gerando o debate de ideias, uma maior compreensão do problema e a capacitação para que eles busquem os melhores tratamentos, desenvolvam uma expertise própria para lidar melhor com os conflitos do dia-a-dia e para melhorar a comunicação entre eles. Uma das grandes ênfases do manual é a necessidade de se ter uma visão esperançosa sobre o processo de adoecimento mental, não como algo que sela a vida e as possibilidades da pessoa, mas que traz a necessidade e a oportunidade de mudanças, que são possíveis quando se tem o conhecimento, uma visão positiva sobre si mesmo e seu transtorno e uma atitude construtiva e parceira para com o paciente. O que testemunhamos em nosso programa é uma revolução em cada um, seja familiar ou paciente, que se dispõe a fazer essa travessia, da doença para a saúde, através de uma jornada de conhecimento, conscientização, reflexão e mudança, compreendendo o novo paradigma da recuperação e encontrando um novo sentido para si e para a sua vida, apesar da presença de eventuais efeitos da doença mental. Eu costumo dizer que esse processo de transformação na maneira de encarar a doença mental e na determinação e motivação de vencer as dificuldades não acontece somente com os familiares e pacientes, mas também com os profissionais de saúde que têm o privilégio de ter essa experiência com as famílias. O nosso papel é fundamental nesse processo! A esperança e a mudança de atitude/compreensão desse novo paradigma deve partir de nós, para que possamos contagiar as famílias e os pacientes, que, na maioria das vezes, nos procuram desmotivados e desinvestidos, criando uma atmosfera propícia para que esse trabalho de transformação pessoal se dê nos encontros.

Portal Entendendo a Esquizofrenia: São mais de 2 mil CAPS em todo país, sem contar com ambulatórios e hospitais. Cada serviço desse tem um perfil diferente e a notícia que temos pelas famílias que nos escrevem é que a realidade é muito diversa, alguns prestam bons serviços, em outros existe muita dificuldade em se prestar o atendimento. Como é possível melhorar essa realidade?

Dr. Leonardo Palmeira: Existe a questão do financiamento da saúde mental e, principalmente dos CAPS, que deve ser o dispositivo prioritário, uma vez que ele é o mais capaz de oferecer um tratamento individualizado junto à comunidade. Cada pedaço desse país tem suas particularidades, numa mesma cidade você tem realidades sociais e culturais diferentes e isso precisa ser levado em conta no tratamento da doença mental. Não vou entrar no mérito do financiamento da saúde, senão empacamos e não enxergamos além disso. É claro que precisa de mais investimento, de ampliar a quantidade de CAPS, de profissionais que atuam neles, etc. Mas eu insisto que é necessário uma mudança junto aos profissionais e que essa mudança precisa acontecer na interação, no relacionamento com os pacientes e suas famílias. Cada serviço precisa ter a participação ativa daqueles que são os principais interessados em melhorar a qualidade do atendimento, em disponibilizar os melhores tratamentos, em ampliar a participação social e comunitária do serviço. Como as demandas são diferentes, há necessidade dessa articulação dentro de cada unidade, portanto, são questões que vão além do financiamento público e que colocam pacientes, familiares e profissionais de saúde no centro dessa questão. Nossa experiência no Entrelaços mostra que essa interação pode mudar a forma como familiares, pacientes e profissionais de saúde se relacionam e é justamente aí que está o poder dessa transformação. E isso passa pelo conhecimento e pela compreensão, pela mudança de postura, pelo otimismo e pela esperança de que a mudança é possível e ocorrerá, mais cedo ou mais tarde, tendo a pessoa como o centro do cuidado, baseada em seus próprios recursos e objetivos, sendo valorizada e reconhecida por todos. O manual tem essa pegada, então imagino que cada profissional de saúde, familiar ou paciente possa baixá-lo e ser um multiplicador, assim como são hoje os grupos comunitários formados pelo Entrelaços, que já atuam em cinco diferentes bairros do Rio de Janeiro e atendem centenas de famílias, levando informação e apoio. Estamos tratando de doenças que atingem a emoção, o sentimento e a relação entre as pessoas, somente por essas vias é que conseguiremos de fato a mudança.

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