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O modelo de recuperação pessoal: a pessoa no centro da intervenção.

por | dez 12, 2017 | 13 Comentários


Colocar a pessoa no centro da intervenção é talvez a maneira mais simples de descrever a mudança de paradigma que o modelo de recuperação pessoal está introduzindo em grande escala nos sistemas contemporâneos para o cuidado das pessoas com doença mental grave. A pessoa no centro da atenção tem implicações de grande importância que merecem destaque.

O que consiste em ser uma pessoa? É uma questão mais para um filósofo do que para um cientista. Para Adela Cortina (“As fronteiras da pessoa”, Taurus Ed 2009, pp.185), “reconhecemos como uma pessoa que tem as capacidades necessárias para a autoconsciência, para o reconhecimento mútuo da dignidade, para agir de acordo com a liberdade e assumir responsabilidades “.

Que esta idéia pode ser importante é sublinhado pelo fato de que, durante muitos anos, não era a pessoa, mas a doença que ocupava o centro da intervenção dos modelos de atenção. Isso é consistente com a maneira pela qual a realidade apresenta o paradigma biomédico. Sob a perspectiva biomédica, existem doenças como esquizofrenia ou transtorno bipolar, que são ou devem ser condições médicas; então você deve tratá-las como tal. Nesta perspectiva, seguem-se certas prioridades. Se for esse o caso, para enfrentar o problema, é necessário que a pessoa esteja ciente da doença, é necessário tratar situações agudas e fazer o possível para evitar recaídas. E para isso, um tratamento psicofarmacológico sistemático mostrou ser a ferramenta mais eficaz.

No entanto, ao estudar os testemunhos das pessoas realmente recuperadas, descobriu-se que essa ideia não atendeu às expectativas de muitas delas. Nesses testemunhos, a ideia que frequentemente aparece é que a abordagem biomédica tende a produzir experiências de vida precárias, muitas vezes vazias de conteúdo.

Que a pessoa ocupe o centro, como o modelo de pregação de recuperação, tem uma perspectiva diferente. Recuperar, de acordo com uma das definições mais citadas, é um processo altamente pessoal para superar e encontrar um novo significado na vida, além dos efeitos catastróficos do sofrimento das doenças mentais – seja lá quais forem. Recuperar é viver uma vida significativa, uma vida que vale a pena viver, uma vida na qual a pessoa tem oportunidades, nas quais projetos e preferências pessoais e escolhas pessoais realmente contem.

Thomas Kuhn (“A Estrutura das Revoluções Científicas”, 1962) enfatizaria que entre as duas versões há a mudança típica do tema próprio das mudanças de paradigma na ciência. Neste caso, seria dizer que alcançamos um certo ponto em que trabalhar cientificamente sobre a ideia de como curar doenças mentais é um impasse onde não podemos ver onde o progresso pode continuar. Em seguida, ocorre a mudança típica da mudança paradigmática: uma vez que não progredimos sobre a ideia de como curar os doentes, consideramos, em vez disso, a ideia de como ajudá-los a viver uma vida digna, a vida de uma pessoa.

Embora às vezes sejam apresentadas como tal, essas duas visões aqui descritas não são completamente antagônicas. A possibilidade de reduzir os sintomas, mesmo parcialmente, é muito valiosa para que eles não invadam a vida inteira da pessoa. Alívio da dor com medicamentos tanto quanto possível faz parte do melhor da deontologia médica e é uma ferramenta que a arte médica disponibiliza para as pessoas. A chave, como é o caso de qualquer ferramenta, é como ela é usada. Um medicamento pode ser – e muitas vezes é – um elemento libertador para a pessoa que sofre, na medida em que a facilita ser ele ou ela e não os sintomas, o agente retoma o controle da vida. Ou, de outra forma, pode ser uma “anestesia mental”, que enterra a pessoa após uma aparência de serenidade, como também acontece com frequência.

O que é claro é que a recuperação está além da mera questão de seguir ou não um determinado procedimento, seja um tratamento farmacológico ou outro. A recuperação está em conexão com oportunidades reais para conseguir um emprego como forma de participar da comunidade, com uma moradia decente, sem ser segregado ou estigmatizado por sua diversidade mental. E também, e isso é muito importante, com a responsabilidade da pessoa de usar – e como usar – essas oportunidades em seu próprio processo de recuperação.

O que é crítico é se a pessoa está no centro ou não, se a ajuda é oferecida de maneira a empoderar a pessoa e não o contrário. Isto é, na minha opinião, um ponto central dos debates em torno da noção de recuperação e que vamos celebrar no XIII Congresso Mundial em Madri, em julho de 2018. Como cada ator é capaz de entender esse quadro de ajuda a partir de sua contribuição singular – o profissional, a família ou a rede de apoio, o apoio de pares e a própria pessoa. Como promover estruturas de colaboração a partir do reconhecimento mútuo das capacidades de cada agente e gerenciar as demandas de controle que, não devemos ignorar, emergem com frequência.

Fonte: Artigo publicado por Dr. Ricardo Guinea, Presidente do Comitê Organizador do World Association for Psychiatric Rehabilitation (WAPR), no site WAPRmadrid2018.

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13 Comentários

  1. Ana

    Esse artigo foi um oásis no deserto.

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  2. Maira

    É o que está “funcionando” com minha filha.

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  3. Zami Rosane

    Estava vendo um vídeo do Dr Lair Ribeiro onde ele afirmava que a esquizofrenia e o transtorno bipolar deveria ser tratado com vitamina D3, B3 e ômega 3. Gostaria de saber a opinião do Dr Leonardo sobre isso.

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    • Editor do Portal

      Zami, não há evidências neste sentido. O Omega 3 já foi aventado para o pródromo da esquizofrenia (antes do primeiro surto), mas depois se mostrou ineficaz. A vitamina D3 parece ter uma ligação com a causa da esquizofrenia, quando a mãe gestante tem baixas reservas de vitamina D3. Isso representaria um fator de risco para as alterações do desenvolvimento cerebral do feto, mas depois que a doença se inicia, não há evidência de eficácia na reposição de D3.

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  4. Jozeane Ramos

    Muito bom.

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  5. Sonia

    Não sei o que dizer sobre isso pois, apesar de ter adoecido aos 23 anos, meu filho se formou em computação, passou em concurso, trabalha todos os dias, vai e volta no seu próprio carro e, até hoje não aceitou a doença. Esteve afastado por 2 ou 3 vezes, em momentos de crise mas nunca precisou de internação. Voltou a tomar medicação porque o médico deu um ultimato, que se ele não se medicasse não iria mais trata-lo. Agora está tomano clozapina. Me sinto perdida pois não sei o grau de comprometimento dele e qual expectativa se tem nesse caso pois percebo que são muito diferentes uns dos outros. Afinal o que seria essa recuperação?

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  6. Elisa

    Eu nunca confiei em nenhum psicólogo que tive, nunca fui compreendida. Muitos psicólogos e médicos depois que me conheceram mudaram de profissão, alguns se sentiram enganados pela teoria que aprenderam na graduação . A verdade é que a realidade é bem diferente da teoria principalmente na área onde a pessoa se torna o centro, a individualidade de cada um torna-se uma complexidade que só terá solução quando a medicina for integrativa-corpo, mente, espírito, será uma revolução no tratamento psiquiátrico e na psicologia. Tenho mediunidade, incompreendida pela psicologia e psiquiatria, nunca soube lidar. A psicologia ouve espírito encarnados, e eu , desencarnados, no fundo também sou psicóloga, de desencarnados, porém não tenho a teoria e a graduação do evangelho, o que me faltou para me proteger e consolar os que me pediram ajuda na mediunidade. Os médiuns sem proteção adoecem psiquicamente, é bem difícil de sermos compreendidos.De tanto sofrer, aprendemos pela dor , até não haver mais respostas. A verdade existe, no evangelho e no amor, logo a cura passa pelo aprendizado, quanto mais se conhece a palavra haverá menos sofrimento e dor. Enquanto não houver meios educativos para compreensão da abordagem integrativa da pessoa, a cura para uma parcela da humanidade será um ideal difícil e para os demais, quase impossível.

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  7. Roder

    Meu filho teve já várias recaídas, não aceita as medicações, tomou até Invega 150 mg injetável (efeito de até até 30 dias), Hoje, após longa internação, vem tomando Clozapina, mas os médicos dizem que sua esquizofrenia é “recorrente”. Se afastou de amigos, ou melhor, os amigos de verdade se afastaram, familiares se afastaram. Restou o pai e a mãe (que ele culpa pela doença e a tem como responsável). Foi afastado do trabalho, não voltou a estudar, só faz caminhadas. O CAPS de Lajeado no RS não faz visitas, ele apenas comparece ao CAPS quando quer ou precisa de Receita médica, portanto ele não é aberto a avaliação constante. Não sabemos mais o que fazer para ajuda-lo.

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  8. Ivete

    Meu filho há quase 6 anos começou a mudar, parou de trabalhar e estudar e se enclausurou dentro de casa não tem contato com ninguém. Há quase dois anos começou o tratamento no CAPS, mas abandonou recentemente e parou de tomar o anti depressivo e agora quer parar com a Olanzapina e não vai mais voltar para consulta. Embora o diagnóstico esteja ente depressão paranoide e esquizofrenia ele não aceita a 2a possibilidade e não está mais colaborando, voltou a ficar calado. Um tempo atrás teve até um inicio de melhora, saia de vez em quando, visitou alguns amigos, planejava voltar a trabalhar mas foi por pouco tempo, praticamente voltou ao início a única diferença é que antes ele sentia dores pelo corpo todo que o deixavam debilitado, agora ele sente cansaço e total falta de energia não consegue fazer nada e tem muito sono, está também com hipotireoidismo que trata há alguns meses. É o único remédio que aceita tomar sem restrições. Estou de mãos atadas ele diz que tem o direito de não querer tomar remédios que lhe causam efeitos colaterais e acha que não tem sintomas de esquizofrenia os médicos insistem que ele deve tomar e que ele tem sintomas da doença, porém ele em 27 anos e eu não posso obriga-lo a nada, tento somente convence-lo pois parece que a insistência é pior, o afasta ainda mais.

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    • Editor do Portal

      Ivete, o tratamento deve ser uma construção do médico com o paciente. Nem sempre o que o médico quer ou a família deseja é viável, é preciso ouvir o paciente e avaliar se há condições de atender aos seus anseios. O importante é construir essa relação de confiança para que aos poucos ele possa considerar outras alternativas. A menos que haja uma situação claramente de urgência ou que ofereça riscos a ele, suas expectativas devem ser levadas em conta.

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  9. Cassia

    A reforma psiquiátrica não muda a mentalidade das pessoas; Não há esperanças neste sentido, a única mudança é você! Adeus,
    Feliz 2018!

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