Ao mesmo tempo em que promete adotar uma nova abordagem de saúde mental, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva começa com o desafio de resolver a situação de 198 hospitais psiquiátricos em atividade no Brasil, segundo levantamento exclusivo do Ministério da Saúde elaborado a pedido do GLOBO. Anteriormente chamados de “hospícios”, estas instituições somam 13 mil leitos, que vivem situações precárias e de descaso, que não mudaram ao longo dos últimos anos.
A preocupação com o tema existe desde a transição de governo, quando o grupo temático de saúde apontou no relatório final ser necessária a retomada de financiamento de modelos em oposição à lógica manicomial na saúde mental, como a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que abrange os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que atende pessoas com transtorno mental severo e persistente baseado na preservação da cidadania dos pacientes e seus vínculos sociais.
— O Caps atua tanto com quadros leves quanto graves, ainda que em crises, possibilitando um tratamento sem privação do convívio familiar e social do paciente. O sentimento de pertencimento social é crucial para melhoras do quadro clínico — explica o médico psiquiatra do Instituto Meraki, Alisson Teixeira.
Na contramão, os hospitais psiquiátricos são caracterizados por internações que induzem ao isolamento e afastamento da sociedade.
A internação em hospitais psiquiátricos não é vista como a melhor opção para tratamento de transtornos mentais desde a publicação da lei da reforma psiquiátrica, em 2001. A norma estruturou a política de saúde mental no Brasil com base no fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos e no fortalecimento da Raps, prevendo cuidados próximos à casa do tratado.
— A lei não proíbe o funcionamento de todos os hospitais psiquiátricos, mas recomenda a diminuição gradual de leitos nessas unidades. Com tantas opções que temos atualmente, não cabe mais recorrer a um modelo que promova a exclusão do paciente — complementa o psiquiatra e ex-gestor de Saúde Mental do SUS-DF, Augusto Cesar Costa.
Os Centro de Atenção Psicossocial (Caps) não têm nenhum aumento de recursos financeiros desde 2011. A expansão da modalidade, principalmente a classificada com o nível 3— que oferece leitos para estabilização de curta duração —, não acompanha o ritmo do fechamento de hospitais psiquiátricos em boa parte do país. Em contrapartida, uma portaria do Ministério da Saúde que vigora desde 2017 garante aumento financeiro aos hospitais psiquiátricos, ou seja, recursos às unidades que a nova gestão pretende reduzir.
Embora tenha criado o Departamento de Saúde Mental, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, até agora não indicou quem irá chefiar a estrutura. O secretário de Atenção Especializada à Saúde, Helvécio Magalhães, onde fica o departamento, não respondeu ao questionamento do GLOBO sobre as mudanças nos hospitais psiquiátricos, mas reafirmou a linha a ser obtida:
— A política de saúde mental do governo do presidente Lula voltará ao leito tradicional e civilizatório da reforma psiquiátrica brasileira, com tantos resultados positivos na saúde, na cidadania e nos direitos humanos. Mas isto não basta. É preciso avançar em pautas mais contemporâneas como o sofrimento mental advindo da pandemia e das mazelas da desigualdade, do desemprego e do desalento de boa parte da população —afirmou o secretário.
Violações
Enquanto o governo não apresenta seu projeto, a realidade nos hospitais psiquiátricos segue chocando e criando histórias tristes por todo o país. Francisco de Souza, 38, foi diagnosticado com transtorno bipolar com 20 anos. Era apaixonado por carros, não tinha vícios e era muito sonhador, descreve a irmã. Ele já tratava a condição há 13 anos quando teve uma crise por falta de remédio em novembro de 2021. Morador de São Luís (MA), foi levado ao Hospital Psiquiátrico Nina Rodrigues, o único do SUS exclusivo para psiquiatria no Maranhão. Precisou ser internado e transferido para uma clínica, também financiada pelo SUS. Só pôde voltar para casa após quatro meses, e morreu assim que chegou.
Ele chegou em casa com 40 kg a menos do que tinha quando foi levado ao Nina Rodrigues. Ao ser removido para a Clínica São Francisco, os médicos avisaram à mãe, Gracinha Dias, que ele estava com problemas gástricos. Prometeram que Francisco seguiria dieta e tomaria os medicamentos adequados,mas proibiram visitas por dois meses.
—Na primeira visita, ele já estava todo machucado e muito magro. Disseram que ele havia se envolvido em uma briga — lembra a irmã Sidneyde.
Segundo ela, Francisco não usava camisa e não vestia as roupas enviadas pela mãe porque todas as peças ficavam em um quarto e “pegava quem chegava primeiro”. O esquema das roupas também funcionava com a comida: quem pegava o final costumava não comer.
— Ele foi entregue quase morto. Chegou em uma kombi, amontoado e amarrado a outros pacientes. Deixaram ele na porta da casa da nossa mãe —conta a irmã, que disse que no dia seguinte foi levado ao hospital novamente, então transferido a uma unidade geral, mas que morreu antes de ser examinado no hospital.
Os problemas do Nina Rodrigues não são uma exceção: a última inspeção de hospitais psiquiátricos, feita pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e Ministério Público em 2018, identificou violações em todas as 40 instituições que foram visitadas. O relatório registra desde estrutura arriscada a até privação de sono e violência física. Outros relatórios similares feitos desde então mostram que os problemas seguem e, em alguns casos, até se intensificaram.
Uma ex-interna do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB), no Rio, diz que até hoje é difícil de rememorar os três meses que passou na unidade no final de 2018. Marilisia Rodrigues, 34, também é ex-moradora de rua e foi levada ao IPUB após um surto psicótico. Ela lembra do hospital como um lugar sujo e violento:
—Eles ameaçavam os pacientes sempre. Quando que me negava a tomar os remédios, era ameaçada com socos. Se ficava agitada, me amarravam na cama. Chegaram a me chutar. O espaço era sujo, com ratos e baratas.
Enquanto o governo não apresenta seu projeto, a realidade nos hospitais psiquiátricos segue chocando.
—Uma das maiores dificuldades para o avanço na assistência aos transtornos mentais é a deficiência ainda existente na rede de atendimento, principalmente na rede pública com os retrocessos desde 2016. Vivemos o momento mais difícil do SUS — avalia Alisson Teixeira.
Fonte: O Globo