O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criticou a decisão do ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, de extinguir o serviço criado no Sistema Único de Saúde (SUS) para acompanhar presos com transtornos mentais, boa parte deles detida ilegalmente em presídios e hospitais de custódia. O GLOBO revelou na terça-feira que o general acabou com o serviço que financia equipes médicas – formadas por psiquiatra, psicólogo, enfermeiro, assistente social e terapeuta ocupacional – cuja função é, desde janeiro de 2014, acompanhar detentos em cumprimento de medidas de segurança ou à espera de um exame que ateste a existência de transtornos mentais.

Em nota ao GLOBO, o CNJ disse que a extinção do serviço fragiliza a política de saúde mental na Justiça; impacta a atuação do Judiciário, das administrações penitenciárias e dos órgãos de segurança pública; e deveria ter sido discutida com a sociedade.

“A mudança pode significar fragilização da política de saúde mental no âmbito da Justiça Criminal, uma vez que atinge todas as pessoas que estão em cumprimento de medidas de segurança e pessoas com transtorno mental que possuem medidas cautelares”, afirmou, em nota enviada à reportagem na manhã desta quinta, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF) do CNJ. “Seus impactos poderão também recair sobre o Poder Judiciário e os órgãos de administração penitenciária e de segurança pública, ao eliminar o financiamento das estruturas necessárias para garantir a substituição das modalidades de medida de segurança (internações em alas de tratamento psiquiátrico em presídios ou hospitais de custódia) por medidas terapêuticas de bases comunitárias. Privilegia-se, assim, o tratamento em meio fechado em vez de o retorno à liberdade com tratamento adequado em saúde.”

A questão é “complexa” e exige “respostas igualmente complexas e intersetoriais”, conforme o CNJ. “Alterações dessas políticas devem ser amplamente discutidas com toda a sociedade e, principalmente, com os atores, instituições e poderes que se entrelaçam nas intervenções referentes a esse tema. A falta de debate pode levar a retrocessos na resposta qualificada em saúde e também na área criminal, para pessoas que, ao invés de estarem em tratamento em saúde mental, conforme previsto na lei 10.216/2001 (lei da reforma psiquiátrica), poderão permanecer em manicômios judiciários sem avaliação por parte da política de saúde.”

A reação do CNJ não foi a única depois da publicação da reportagem pelo GLOBO. Na quarta, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), um órgão com atuação independente de peritos e vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, enviou um ofício à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) em que trata da extinção do serviço voltado a presos com transtornos mentais. A PFDC é o colegiado da Procuradoria-Geral da República (PGR) que trata de assuntos de direitos humanos. Desde o último dia 25, tem um novo coordenador, o subprocurador-geral da República Carlos Alberto Vilhena. “O documento já está sob análise da PFDC”, informou a assessoria de imprensa do colegiado.

Também na quarta, o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege) publicou uma nota técnica de 31 páginas que aponta efeitos positivos do serviço criado no SUS, com a diminuição, ao longo dos anos, de detentos com transtornos mentais em presídios e hospitais de custódia, na contramão do aumento da população prisional brasileira. A nota técnica critica a decisão do general Pazuello de acabar com as equipes médicas formadas para acompanhar esses detentos. O documento é subscrito por 18 Defensorias Públicas nos estados, Defensoria Pública da União (DPU) e 103 organizações, associações e entidades com alguma atuação na área, como Conselhos Regionais de Psicologia.

A nota técnica aponta que, no ano em que o serviço do SUS foi criado, com o financiamento a equipes de avaliação (a sigla é EAP), havia 4,5 mil pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei, seja em hospitais de custódia, em alas psiquiátricas de presídios ou em celas comuns. Naquele momento, conforme a nota, o universo de presos era de 700 mil. Cinco anos depois, a quantidade de presos com transtornos caiu para 4,1 mil, ante um aumento da população prisional para 748 mil detentos. No Maranhão, a EAP formada garantiu a desinternação de 80 pessoas. No Pará, houve uma desinternação “responsável” de 130 detentos com transtornos. No Piauí, o serviço contribuiu para o fechamento do hospital de custódia em Teresina, onde presos eram mantidos por décadas, sem acompanhamento psiquiátrico, sem laudos médicos e até mesmo sem condenação ou absolvição sumária pela Justiça.

Outra reação à decisão do general Pazuello ocorreu na Câmara dos Deputados. A bancada do PSOL protocolou na quarta um projeto de decreto legislativo para anular os efeitos da portaria assinada pelo ministro interino da Saúde. Assinam o projeto nove parlamentares do partido. “Vimos com grande indignação, repudiamos a revogação do serviço e solicitamos que o Ministério da Saúde retome essa estratégia normativa e faça gestão para a sua expansão, mediante respeito à histórica luta antimanicomial, à lei 10.216/2001, aos trabalhadores do SUS e aos familiares e usuários da saúde mental, que se encontram confinados em manicômios judiciários”, afirmam os deputados na justificativa do projeto.

Numa canetada, Pazuello extinguiu o Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei. A portaria que extingue o serviço foi assinada em 18 de maio, que é exatamente o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. O movimento propõe uma reforma psiquiátrica que leve a um esvaziamento de manicômios, evitando, por exemplo, detenções ilegais de pessoas com transtornos mentais. O foco está na desinternação, com o fortalecimento de estruturas como as residências terapêuticas. O governo do presidente Jair Bolsonaro é contra essa proposta e a associa a políticas de esquerda.

Para acabar com o serviço, Pazuello alterou uma portaria vigente, com exclusão de trechos, e revogou a portaria de janeiro de 2014, que havia instituído o acompanhamento de presos com transtornos mentais por meio das EAPs. Cada equipe tem um custo mensal ao SUS de R$ 66 mil. Os pagamentos devem perdurar somente pelos próximos 180 dias, segundo a decisão do ministro interino.

A criação de um serviço médico voltado a acompanhar pessoas presas com transtornos mentais, de forma que se garanta assistência médica e que se permita análise dos processos judiciais, ocorreu depois de O GLOBO publicar uma série de reportagens denunciando, em 2013, que presos com problemas mentais eram colocados em celas comuns em presídios. Esses detentos ou não tinham o chamado incidente de insanidade mental — que atesta a loucura como pano de fundo para o ato criminoso — ou estavam em cumprimento de medidas de segurança, aplicadas pela Justiça quando se atesta a loucura. As reportagens revelaram ainda um cotidiano de tortura em hospitais de custódia, estruturas existentes para abrigar esses presos.

O trabalho jornalístico levou o CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a fazerem mutirões para analisar os casos mostrados, o que resultou em solturas em casos de detenções ilegais. As reportagens também levaram o governo federal a criar uma equipe interministerial para discutir as denúncias, formada por técnicos do Ministério da Saúde, do Ministério da Justiça e da pasta de Direitos Humanos. O serviço do SUS voltado para presos com transtornos mentais acabou sendo criado meses depois.

Para extingui-lo, o ministro interino da Saúde levou em conta um parecer de técnicos da pasta finalizado em dezembro de 2019, que concluiu que as EAPs não foram “massivamente” implantadas no país. Conforme o parecer, 11 equipes foram habilitadas desde 2014, um número pequeno se comparado com as equipes de atenção básica prisional, que atuam intramuros — 357 habilitações no mesmo período, segundo o documento.

Ao GLOBO, o Ministério da Saúde afirmou que o Judiciário já conta com instrumentos para acompanhar o cumprimento de medidas de segurança e “desencarceramento” de pessoas com transtornos mentais. A EAP, formada por psiquiatra, psicólogo e outros profissionais de saúde, “não é uma equipe de atendimento direto à saúde dos custodiados”, segundo a a assessoria de imprensa da pasta. “As EAPs cumprem um papel já previsto em lei e executado pelo poder Judiciário.”

Fonte: O Globo – 05/06/2020

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