Essa matéria traz a história de Gerson e sua morte trágica ao invadir uma jaula de uma leoa em um zoológico em João Pessoa nesta última semana. A notícia repercutiu muito e acendeu o debate sobre a insuficiência das instituições de Estado e a falta da rede de proteção às pessoas com transtornos mentais. Sofrendo de esquizofrenia, sem família, tendo passado por abrigos, prisões, serviços de saúde, vivido em situação de rua, faltou a Gerson o amparo e a estrutura do Estado para evitar seu fim trágico. Fim este que causou comoção nacional, mas que se junta ao fim de tantos jovens que morrem precocemente no Brasil pela violência do próprio Estado, seja vítima da polícia (um jovem foi morto por policiais em casa, na presença de sua mãe, durante um surto), das guerras do tráfico, das chacinas, do descaso na saúde, na assistência social, na justiça e nos presídios ou pela falta de oportunidades de vida e trabalho, levando-os ao suicídio.
O papel da sociedade é cobrar do Estado políticas públicas inclusivas, com participação cidadã das comunidades em que atuam, com maior alcance populacional, maior qualificação dos dispositivos e dos recursos humanos, maior integralidade e intersetorialidade da atenção e do cuidado, sempre em comunidade, e não utilizar de tragédias como esta para desmerecer oportunisticamente o movimento de reforma psiquiátrica que substituiu a trágica realidade manicomial do passado.
O manicômio ainda se faz presente fisicamente em muitas estruturas públicas e privadas, que violam direitos humanos e a dignidade da pessoa, e mentalmente em muitas pessoas que insistem em respostas reducionistas para a saúde mental. Alguns que defendem a internação como solução não percebem como a falta de oportunidades e a institucionalização deste jovem podem ter sido as precursoras desta tragédia, afinal, ele passou por diversas instituições que falharam em prover o que ele de fato buscava.
A seguir leia a matéria do O Globo que narra detalhadamente a história deste jovem.
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Debaixo de comoção, foi sepultado nesta segunda-feira no Cemitério do Cristo, em João Pessoa, o corpo de Gerson de Melo Machado, de 19 anos, atacado por uma leoa após invadir a jaula do animal em um zoológico na capital da Paraíba. Da família, só a mãe destituída, Maria da Penha Machado, e uma prima acompanharam o enterro, que também atraiu moradores da região e curiosos. A mãe, que perdeu o poder familiar há mais de dez anos, hesitou diante do corpo antes de reconhecê-lo no Instituto Médico-Legal (IML). O ritual curto marcou o fim de uma vida empurrada desde cedo para a margem, entre abandono, doença mental e a sucessão de portas que nunca se abriram para Gerson, conhecido como Vaqueirinho.
Ele morreu no domingo após escalar as estruturas de proteção do Parque Zoobotânico Arruda Câmara, descer por uma árvore e entrar no espaço dos leões. Ele acessou a área interna sem ser visto e chegou ao território de uma leoa batizada de Leona, que avançou e o atacou imediatamente. O laudo inicial indica mordidas no pescoço e choque hemorrágico. O caso levou a prefeitura a abrir apuração sobre as condições de segurança do parque.
A trajetória de Gerson começou a se desintegrar ainda na primeira infância. A mãe, portadora de esquizofrenia, vivia em profunda vulnerabilidade e perdeu o poder familiar de todos os filhos. Gerson era o mais debilitado. A certidão de nascimento dele, que já não tinha o nome do pai, deixou de ter o da mãe quando ele tinha 10 anos. A destituição familiar ocorreu para facilitar uma possível adoção, já que ele estava em casa de acolhimento. Todos os irmãos foram adotados. Segundo Verônica Oliveira, conselheira tutelar que o acompanhou por anos, ele nunca foi cogitado para adoção porque as famílias rejeitam sumariamente crianças com transtornos mentais.
Sem a chance de ter uma família, Gerson passou a escapar dos abrigos. Aos 12 anos, saiu em busca da mãe, acreditando que um dia ela estaria bem o suficiente para cuidar dele. No entanto, Maria da Penha também lutava contra a esquizofrenia. Ela chegou a levá-lo ao Conselho Tutelar de João Pessoa e, em crise, disse que não conseguia ser mãe e que sua mente adoecida a incapacitava de se sustentar e dar afeto ao filho. Verônica descreve essa relação como duas pessoas frágeis tentando se agarrar uma à outra e sempre derrotadas pelas circunstâncias.
O Conselho Tutelar encaminhou Gerson a um abrigo, mas ele escapou mais uma vez. Aos 12 anos, foi encontrado sozinho na beira de uma rodovia. Levado a uma clínica do governo, atestou-se que apresentava comportamentos associados a transtorno psicótico, dificuldade de vínculo afetivo e episódios de desorganização. Equivocadamente, um profissional do complexo psiquiátrico avaliou o caso como simples problema comportamental, quando na verdade Gerson era portador de esquizofrenia, doença diagnosticada mais tarde. A esquizofrenia é um transtorno mental grave que compromete a percepção da realidade, o pensamento e o comportamento. Causa delírios, alucinações e desorganização mental, afetando a capacidade de julgamento e de vida autônoma.
A doença veio à tona de forma oficial quando ele tinha 18 anos e respondeu a um processo criminal por ter danificado o portão de um centro educacional onde já havia sido internado. No inquérito e na audiência, ficou registrado que ele agia em surtos, sem compreender plenamente o que fazia. O juiz responsável concluiu que o jovem era inimputável por causa da esquizofrenia e determinou medida de segurança, afirmando que ele não tinha capacidade de entender o caráter ilícito dos próprios atos.
Na adolescência Gerson passou longos períodos nas ruas. Dormia em bancos de praça, pedia comida e pleiteava ser adotado por estranhos que passavam. Não conseguia permanecer nos serviços que o acolhiam. A fome era constante. Em mais de uma ocasião, praticou pequenos furtos para comprar comida. Em outras, atirou pedras em carros da polícia para ser preso e conseguir abrigo e refeições. Ele próprio dizia que, quando estava na cadeia, sentia que recebia mais cuidado do que na rua.
Pouco antes da maioridade, ele tentou violar um caixa eletrônico e acabou detido. Na saída da audiência de custódia, revoltado por ter sido liberado de volta à rua, quebrou uma viatura. Em depoimento, afirmou que quebraria todas se tivesse força para isso, em um discurso desorganizado que revelava o agravamento do transtorno.
Havia também as fantasias recorrentes. Em um dos episódios mais graves, entrou no trem de pouso de um avião no aeroporto de João Pessoa, tentando viajar clandestinamente para a África, onde dizia que seria domador de leões. O voo atrasou porque a companhia aérea precisou retirá-lo do compartimento. Ele repetia que seria aceito pelos felinos, que lá encontraria um lugar onde não fosse rejeitado e que os animais o compreenderiam melhor do que qualquer pessoa.
Dois dias antes de morrer, Gerson procurou o Conselho Tutelar pedindo seus documentos para tirar carteira de trabalho. Queria um emprego. O comportamento alternava momentos de lucidez com falas completamente desconexas. O prontuário dele no Conselho tem quase duzentas páginas e registra sucessivas tentativas de acolhimento, todas interrompidas pela instabilidade, pela esquizofrenia sem tratamento adequado e pela precariedade das redes de proteção.
A avó materna, também com diagnóstico de esquizofrenia, chegou a acolhê-lo em alguns períodos, mas nunca teve condições reais de garantir estabilidade. A estrutura familiar inteira estava quebrada, e o Estado não conseguiu suprir as lacunas.
Fonte: O Globo



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