Artigo de autoria dos psiquiatras Nelson Goldenstein e Fernando Ramos, publicado na edição do jornal O Globo de 05/01/12.

O desenvolvimento das últimas décadas tem trazido novas questões ao campo da saúde mental. Com os avanços e reformulações da assistência psiquiátrica mundial, como a recomendação universal do estabelecimento de cuidados aos portadores de transtornos mentais severos e persistentes de acordo com suas redes sociais, e a extinção dos antigos manicômios, aparecem novos temas que já se encontram na pauta das discussões dos próximos anos.

A prática tem demonstrado que o tempo decorrido entre o surgimento das primeiras manifestações psicóticas em uma pessoa e o primeiro contato com a rede de saúde, geralmente ultrapassa um ano. Além disso, o tempo entre as alterações mentais iniciais (ainda não psicóticas), e o recebimento dos primeiros cuidados, costuma ser ainda maior, ultrapassando incríveis quatro anos. Estudos clínicos e epidemiológicos têm sugerido que a duração do tempo de psicose não tratada, e fases preliminares ao aparecimento da doença, têm forte impacto sobre o prognóstico dos quadros psicóticos, seja em termos clínicos ou sociais.

Hoje, sabe-se que cerca de dois terços das pessoas que atravessam estes períodos de adoecimento pré-psicótico sofrem de manifestações depressivas, avaliadas entre moderadas e graves. Dentre estas, quase noventa por cento apresentam plano suicida, ou cometem tentativas graves. Na média, dez por cento alcançam êxito letal. Não são números desprezíveis. Isto, sem falar nos indivíduos que adotam condutas claramente autodestrutivas, como o uso abusivo de álcool e outras drogas, além de outros comportamentos de alto risco, incluindo a direção perigosa. Quase todos encontram no isolamento social, parcial ou total, sua forma de autodefesa.

Ora, do ponto de vista intuitivo, não é difícil compreender o que representa para um indivíduo que começa a adoecer a vivência de fracasso, estranheza e vergonha, acompanhada da apavorante certeza subjetiva de estar enlouquecendo.

Portanto, na medida em que os manicômios são fechados, e a rede substitutiva se amplia e se consolida, devemos nos perguntar o que fazer em relação às próximas etapas da reformulação na assistência aos pacientes com quadros psicóticos e transtornos graves de personalidade. Devemos considerar que esses quadros são inevitáveis, prenunciando uma gravidade e cronicidade natural? Ou podemos substituir esta abordagem, considerando os novos dados, que indicam melhores resultados terapêuticos quando se intervém mais precocemente?

Se consideramos como válidos os resultados positivos das novas pesquisas voltadas para as intervenções precoces, devemos mudar nossas referências e preconceitos, ainda enraizados nos tempos da exclusão manicomial, e investir em cuidados na saúde das crianças, adolescentes e adultos jovens, e na capacitação em saúde mental dos profissionais da atenção básica, para que estas pessoas possam receber os cuidados necessários em tempo hábil. Em vários países, onde já foram efetuados os programas de reforma da assistência psiquiátrica, a tarefa de reconhecer e intervir precocemente, impedindo ou atenuando a gravidade dos quadros psicóticos, compõe a ordem do dia. Está na hora de enfrentarmos sem preconceitos essa questão também aqui no Brasil.

NELSON GOLDENSTEIN é psiquiatra e pesquisador do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, e coordena o Programa de Pesquisa em Reconhecimento e Intervenção Precoce nas Psicoses.

FERNANDO RAMOS é psiquiatra e coordenador da Esam/RJ.

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