O ano de 2022 chega ao fim de uma forma inusitada. O Brasil viveu um processo eleitoral atribulado em que esteve em jogo sua democracia como nunca antes desde a sua redemocratização, manifestações golpistas e de questionamento do resultado das eleições tumultuaram o ambiente pós-eleitoral e de transição de governo, a camisa canarinho, antes cooptada politicamente, precisou ser aposentada precocemente numa Copa do Mundo extemporânea em que o Brasil foi eliminado precocemente, aproximamos do Natal e do Revéillon e ainda pairam incertezas sobre a posse do novo governo eleito, enfim, um final de ano em que pela primeira vez desde o início da pandemia da COVID-19 respiramos um pouco mais aliviadamente, embora os casos da doença voltem a aumentar, mas nada comparável ao último pico de janeiro deste ano.

Mas nem todas as notícias são assim desanimadoras e podemos ser otimistas em relação ao futuro da saúde mental no Brasil com as novas perspectivas, que não vêm somente dos compromissos do novo governo que assumirá em 01 de janeiro de 2023 e que traz novos ares, mas sobretudo do movimento social de usuários e familiares por mais protagonismo, que traz mais esperança.

Há alguns anos o movimento dos usuários da saúde mental por mais protagonismo vem ganhando maior visibilidade, formando um consenso que para alcançar a recuperação de um transtorno mental são essenciais a liberdade, a decisão apoiada, o tratamento e o relacionamento não-hierarquizado e a contratualidade do indivíduo com sua casa, família, trabalho e rede social, ou seja, o exercício pleno de sua cidadania em todas as esferas de sua vida. E para o alcance dessa recuperação, que vem sendo chamada de recovery (termo em inglês utilizado para diferenciá-la da recuperação clínica), uma tecnologia fundamental é o suporte de pares e as narrativas em primeira pessoa que permitem as trocas de experiência entre os usuários e seu fortalecimento.

Nós do Programa Entrelaços, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, estamos trabalhando dentro desta filosofia desde os primeiros grupos de ajuda-mútua criados em 2011, contudo, a cada ano assistimos entusiasmados o crescimento desse protagonismo com o número crescente de usuários participando de todas as etapas da construção deste projeto. Os exemplos deste protagonismo estão em nossos encontros ao final de cada ano e nas campanhas que eles organizam pela saúde mental (Janeiro Branco) e pelo Dia da Consciêntização da Esquizofrenia (24 de Maio), além de intercâmbios com outros movimentos da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica brasileira.

No dia 03 de dezembro deste ano realizamos no Instituto de Psiquiatria da UFRJ/IPUB o evento de encerramento de 2022 após dois anos de evento on-line pela pandemia da COVID-19. Pela primeira vez em dez anos de história do Programa Entrelaços o evento foi exclusivamente realizado por seus usuários e familiares, sem participação direta dos técnicos, que se limitaram a coordenar e apresentar as mesas. Testemunhamos depoimentos inspiradores e enriquecedores de pessoas narrando sua própria história de superação, revelando seu empoderamento e sua resiliência no enfrentamento de suas dificuldades, o maior exemplo de que o protagonismo na saúde mental é importante nas trajetórias de recuperação de cada um, seja usuário ou familiar. O protagonismo não é somente possível como desejável para quem deseja recuperar sua auto-estima e sua cidadania, conforme prevê o conceito mais moderno de recuperação, o recovery. Protagonismo implica autonomia e liberdade, com as pessoas livres para fazerem suas escolhas e tomarem as decisões sobre suas vidas, garantindo-lhes uma atitude de respeito e legitimidade da comunidade e da sociedade.

Nós do Programa Entrelaços acreditamos na força deste movimento partindo de sua base, com vetores que emanam de dentro do movimento social para fora, com efeitos transformadores na cultura que a sociedade tem sobre a loucura e a deficiência. Essa é a melhor forma de combatermos o preconceito e o estigma, como também reivindicar direitos e melhores condições de trabalho, moradia e integração social, num resgate de cidadania plena para as pessoas usuárias da saúde mental. Esse é o novo momento da Reforma Psiquiátrica Brasileira que encontra ressonância nas políticas públicas anunciadas pelo novo governo que se avizinha (figura 1).


Figura 1- Trecho retirado do Programa de Governo Lula/Alckmin 2022 para a política de saúde mental.

A primeira mesa (foto 1) do evento apresentou o projeto Comunidade de Fala, idealizado pelo ativista norte-americano Richard Weingarten, que conta com iniciativas em quatro municípios brasileiros, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Santa Maria. Usuários da saúde mental apresentam suas vivências do adoecimento à recuperação, com narrativas que revelam à plateia o empoderamento e o protagonismo dos usuários nas diferentes etapas. O projeto tem a supervisão do professor Eduardo Vasconcelos, importante referência na luta antimanicomial do país.


Foto 1 – Luiz Eduardo, Orlando Baptista e Elizabeth Sabino, do projeto Comunidade de Fala.

A segunda mesa (foto 2) trouxe a proposta de construção de uma associação de usuários e familiares como desdobramento da experiência com o Programa Entrelaços para apoiar e fomentar iniciativas de combate ao estigma, de formação educacional de pares especialistas em grupos de suporte mútuo e de geração de renda para pessoas em vulnerabilidade psicossocial.


Foto 2 – Gustavo Meano, Cristina Leal e Luisa Lins debatem o projeto associativo.

A terceira e última mesa (foto 3) contou com a apresentação de três integrantes do Grupo 15 de Nós, grupo do Programa Entrelaços formado por pessoas usuárias da saúde mental, que trouxeram suas vivências em relatos emocionantes de como superaram barreiras como a desinformação, o preconceito, o auto-estigma, a resistência ao tratamento e as dificuldades sociais e acadêmicas. Os relatos são um exemplo de como a informação, a educação e a troca de experiências entre eles são capazes de produzir profundas transformações de como as pessoas enxergam a si próprias com o transtorno mental e como mobilizam seus potenciais para recuperarem sua auto-estima e sua auto-confiança na busca de empoderar-se a si próprias e promover o recovery em suas vidas.


Foto 3 – Isabela Paixão, Pedro Henrique e Mariah das Neves do Grupo 15 de Nós falam das vivências.

O desafio que se coloca à nossa frente é como replicar esses modelos de empoderamento e recovery que transformam pessoas que vivenciam passivamente suas condições de saúde em protagonistas de sua própria história e de sua vida para um alcance mais abrangente na Rede de Atenção Psicossocial neste novo tempo para a saúde mental que está em curso e que deve beneficiar um número cada vez maior de usuários.

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