Apresentação
Esta nota crítica foi pedida pela Frente Parlamentar Antimanicomial da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, para subsidiar os debates parlamentares e políticos sobre as repercussões do novo pacote de corte de gastos nos benefícios sociais, a partir de uma alert meu divulgado nas redessociais de esquerda e do movimento antimanicomial logo após a divulgação do pacote, no dia 01/12. Dada a urgência do tema, esta nota foi realizada em apenas um dia, portanto em curtíssimo espaço de tempo, a partir apenas dos dados divulgados pela grande imprensa e disponíveis na Internet, sem ter acesso ao texto original do governo.
Buscou-se um texto não panfletário e mais técnico e informativo, mas sem descuidar da orientação ético-política. Ela deve ser complementada imediatamente com novas pesquisas, com acesso ao texto original do governo, e por uma nota técnica mais bem fundamentada.
Informe sobre o pacote de corte de gastos e das mudanças propostas no BPC
Um pacote de corte de gastos foi enviado pelo governo Lula ao Congresso neste início de dezembro de 2024, em resposta à alta pressão do mercado financeiro e do Banco Central. O pacote inicialmente incluiu um conjunto mais amplo de medidas de tributação para os mais ricos; controle dos salários federais altíssimos acima do teto; controle das regras generosas para entrada na reserva e aposentadoria de militares; isenção de imposto de renda dos que ganham até 5 salários mínimos; e numerosas medidas de controle de gastos correntes de todas as áreas de política públicas e sociais, e particularmente medidas de controle do reajuste do salário mínimo e restrições de acesso aos benefícios sociais.
As medidas de caráter redistributivo mais estruturais requerem uma pactuação política mais ampla, impossível de ser processada no curto prazo junto aos setores privilegiados atingidos. Os militares, por exemplo, já reivindicam mudanças “mais brandas” e nova negociação. O mesmo acontece no Congresso, com a atual hegemonia absoluta do Centrão e dos partidos de direita e ultradireita. E tendo em vista a pressa do governo, certamente o encaminhamento será exatamente exigir pressa no conjunto das medidas que atingem mais diretamente os interesses e as conquistas populares, mais fáceis de serem aprovadas, pois coincidem com os interesses do Centrão e da direita no Congresso.
As mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) estão nesse foco, e correm o risco de uma aprovação rápida, e daí a urgência de mobilização dos movimentos sociais e particularmente o movimento antimanicomial e das pessoas com deficiências.
O BPC é um salário mínimo pago a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda. Hoje, para ter direito ao BPC, é preciso que a família tenha uma renda de cada pessoa de no máximo 25% do salário mínimo (hoje o equivalente a R$ 353 por mês).
Até hoje, de acordo com a lei aprovada em 2020, o benefício de prestação continuada ou o benefício previdenciário não é computado, para fins de concessão do benefício, no cálculo da renda familiar. Em uma das alterações propostas agora, divulgadas pela imprensa, o projeto diz que se a família já tiver outro beneficiário do BPC ou aposentadoria, o valor recebido por ela passa a entrar na conta para apuração da renda familiar por pessoa.
Outra mudança para o acesso ao BPC, é o conceito e critério de acesso. Na legislação atual, a base legal é a Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência, que recebeu no Brasil, pelo Decreto n. 6.949, de agosto de 2009, o status de norma constitucional, portanto acima das demais leis. A convenção e os critérios atuais do BPC consideram “pessoa com deficiência aquela com impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma e mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”. Pelo que foi informado pela imprensa, o novo critério de acesso é a pessoa “incapacitada para a vida independente e para o trabalho”, devidamente registrada com base na Classificação Internacional de Doenças (CID).
Segundo a imprensa, outra alteração importantíssima no BPC, e também de alta gravidade, é a base de cálculo da renda familiar para ter acesso ao benefício. Hoje, temos um número significativo de pessoas que recebem o BPC que moram sozinhas, constituindo as chamadas famílias unipessoais. Muitas dessas pessoas perderam o apoio de suas famílias, ou recebem delas apenas algum apoio financeiro limitado, e portanto, a renda de seus familiares não entra no cômputo do teto da renda per capita indicada acima, pelas normas atuais. Pelo projeto que está na Câmara, vão entrar no cálculo para fins e pagamento do BPC a renda de irmãos, filhos e enteados. A renda de cônjuge que não mora no mesmo imóvel também será incluída para calcular o novo valor do benefício.
Outras mudanças incluem critérios mais rigorosos na inscrição ou atualização de famílias unipessoais, requerendo avaliação obrigatória no domicílio da pessoa, e checagem de informações cruzadas, a serem disponibilizadas pelas concessionárias de serviços públicos.
Avaliação das propostas de mudanças
Em primeiro lugar, o pacote de gastos como um todo deve ser avaliado criticamente, como uma tentativa do governo Lula, politicamente encurralado, tentar responder à chantagem do grande capital, da grande imprensa, do mercado financeiro e de seus representantes no Banco Central, que força os juros para cima, não intervem na alta artificial do dólar, e exige redução a todo custo do déficit fiscal. Isso tudo a despeito de todos os bons resultados do atual governo em termos de indicadores de crescimento econômico, de ganhos fiscais acima do esperado, da baixa taxa de desemprego e da diminuição da pobreza e da miséria nos menores patamares da história do país. E dada a correlação de forças desfavorável, a cobrança vem na direção de reduzir os investimentos em políticas públicas e sociais, e particularmente nos benefícios socias.
Em relação ao BPC, em primeiro lugar temos uma mudança claramente reducionista e restritiva nos critérios de acesso, na definição das pessoas passíveis de receber o benefício, em uma clara reversão das conquistas da Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência, que tem status de emenda constitucional. Esta proposta de mudança, segundo a imprensa, deverá ser realizada em projetos de lei complementar e ordinária, e portanto, abrirá uma brecha para questionamento no debate parlamentar e na esfera judicial, já que poderá ser questionada como inconstitucional.
Vamos detalhar esse ponto crítico das mudanças no conceito e no critério de acesso, agora definidos como uma “incapacidade para a vida independente e para o trabalho”, devidamente registrada com base na Classificação Internacional de Doenças (CID). Esse critério exigirá necessariamente um diagnóstico a ser realizado por perito médico, uniprofissional, categoria que têm pressionado o governo nos últimos anos para não perder a função exclusiva de avaliar a incapacidade, e certamente tenderá a permitir o acesso ao BPC apenas aos casos de deficiência grave. Essa proposta de mudanças entra em confronto com o conceito e o critério estabelecido pela Convenção da ONU, e também aqui, poderemos também mobilizar questionamentos nos debates parlamentares e na esfera judicial. Segundo a Convenção, a avaliação da deficiência deve ter obrigatoriamente de natureza biopsicossocial, multiprofissional e multifatorial, levando em conta uma série de dimensões de qualidade de vida e de funcionamento. Muitas pessoas com deficiências leves ou moderadas por um lado podem ter uma vida independente e até mesmo a condição de morar sozinhas, mas as suas limitações podem lhes impor dificuldades e até mesmo bloquear a possibilidade de competir no mercado em igualdade de condições com as demais pessoas sem deficiências, para conseguir um trabalho que lhes garanta a sobrevivência. O resultado da mudança, se aprovada, será, assim, restringir muito o acesso ao PBC, diminuir a independência e autonomia dessas pessoas, e obriga-las a voltar a depender diretamente do suporte financeiro e viver com a família, mesmo quando esta tiver recursos limitados, ou que seja tóxica, ou negligente em relação aos cuidados necessários à pessoa.
Essas implicações são particularmente graves quando consideramos as pessoas com deficiências mentais/psicossociais, ou seja, com formas de sofrimento mental mais severas e de longo prazo, ou com uso problemático de drogas. Muitas vezes, elas são discriminadas e têm conflitos permanentes com seus familiares, e a perda do BPC certamente as obrigará a retornar a uma condição de total dependência econômica, desvalorização social e retorno à casa da família, com deterioração da qualidade de vida e da condição mental. Além disso, muitas das pessoas usuárias de nossa rede de atenção psicossocial avançaram em seu processo de reabilitação, têm plena capacidade de viverem sozinhos, podem ter trabalhos diferenciados com formas específicas de apoio, como nos programas de economia solidária e emprego apoiado, mas têm limitações que as impede de competir diretamente no mercado aberto de trabalho. Além disso, mesmo quando têm boas condições de conquistar trabalho nesse mercado, são passíveis de passaram por períodos de crise, que acabam gerando seu desligamento de trabalhos ou empregos formais. Em última instância, a mudança proposta certamente vai gerar a perda do BPC para muitas dessas pessoas usuárias, com um grande retrocesso no seu processo de reabilitação e independência pessoal, tendo que voltar para a casa de familiares e retornando para os vários tipos de conflitos com eles. Assim, a mudança representará na certa um grande retrocesso no processo brasileiro de reforma psiquiátrica e de serviços de atenção psicossocial, tão elogiado pela ONU, OMS e OPAS.
Uma outra alteração importantíssima e de alta gravidade, é a base proposta de cálculo da renda familiar para ter acesso ao benefício, incluindo necessariamente a renda dos familiares das pessoas com deficiências para o cálculo do teto máximo de renda para acesso ao BPC, mesmo quando moram sozinhas, constituindo família unipessoais. Em suma, a proposta joga o fardo de garantir a sobrevivência e a produção do cuidado à pessoa com deficiência nas costas de seus familiares, aumentando a pressão principalmente sobre as mulheres, que normalmente são colocadas na posição de cuidadoras naturais e invisíveis socialmente, aumentando a opressão de gênero. E para a pessoa com deficiência, a mudança impossibilita todos os avanços já conquistados, em termos de independência e de autonomia pessoal, mesmo com todas limitações geradas por um benefício apenas no valor de um salário mínimo.
Finalmente, é preciso avaliar o impacto mais geral das medidas restritivas nos atuais benefícios sociais no perfil de desigualdade social do país. O jornal O Globo publicou no dia de hoje (06/12/24, pág 15) uma reportagem com dados do IBGE mostrando como a pobreza e a miséria diminuíram no país, em patamares nunca vistos antes. No entanto, o Índice de Gini, indicador que mede a desigualdade social, se manteve inalterado, mesmo com o nível mais baixo de desemprego e as altas no salário dos menos qualificados, por que as mudanças não alteraram o crescimento da renda dos mais ricos, como juros e dividendos, aluguéis, etc. Segundo os dados analisados, o Brasil continua sendo um dos países mais desiguais do mundo, sendo o segundo mais desigual entre 22 países investigados, só perdendo para a Colômbia. E o mais importante, o IBGE estimou que a desigualdade teria aumentado em 7,2% sem os benefícios do governo, sendo as regiões Norte e Nordeste as mais impactadas pela ausência dos programas. Em outras palavras, as restrições aos benefícios sociais propostas no novo pacote fiscal significam aumentar a desigualdade social mais ampla do país!!
* Eduardo Mourão Vasconcelos é sicólogo, cientista político, doutor pela London School of Economics and Political Science, pós-doutor pela Anglia Ruskin University, em Cambridge, ambas no Reino Unido, e professor aposentado da UFRJ, e ativista antimanicomial.
Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 2024
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