A voz

Anderson de Oliveira tinha 17 anos quando uma voz em sua cabeça disse que ele devia cometer suicídio. Isso foi há 15 anos, e ele ainda consegue contar a história em detalhes. Àquela altura, Anderson já se acostumara a escutar vozes – ele as ouvia desde os 14 anos. Era fácil ignorá-las. Elas soavam gentis e inofensivas, eram parecidas com sua própria ou surgiam a partir de um objeto inanimado, como uma bola com quem ele conversava e a quem podia dar ordens. Ele não se preocupava. Naquela noite, em 1999, a voz soou grave e assertiva: “Ela dizia que eu devia me matar”.

Anderson acordara cedo para ir a escola. Era um aluno aplicado e quieto por natureza, que se tornara mais arredio desde a morte do avô, três anos antes. Os dois eram muito próximos e Anderson sentiu com intensidade a perda. Isolou-se. Naquele dia, Anderson foi ao colégio, à aula de música e ao curso de informática. Passava das 21h quando perdeu o ônibus na volta para casa e teve de percorrer o caminho a pé. Foi quando a voz lhe deu a ordem.

Obediente, Anderson entrou como um bólido pelo portão da casa dos pais. Correu até a sacada do quarto e tentou se atirar. Foi preciso que o pai e o irmão mais novo o detivessem. Sem saber como agir, e sem conseguir acalmar o filho, a família pediu ajuda à polícia. Os policiais apareceram com armas em punho. “Eles acharam que o Anderson fosse usuário de drogas”, diz o pai, Luiz Carlos de Oliveira. O rapaz jamais sequer bebera. Anderson foi levado para um hospital no bairro paulistano da Casa Verde. Foi medicado com calmantes e passou o resto da noite em claro, murmurando coisas incompreensíveis.

Passaram-se quatro anos até Anderson receber o diagnóstico: ele era esquizofrênico. Um transtorno que atinge 1% da população do mundo, a esquizofrenia causa delírios auditivos ou visuais. Faz a pessoa achar que está sendo perseguida, ou que tem poderes especiais. É difícil de diagnosticar: as primeiras manifestações surgem, geralmente, entre o fim da adolescência e o início da idade adulta, e sua presença só costuma ser notada depois de um episódio psicótico, um primeiro surto, como o que Anderson sofreu em 1999. Não existe teste de sangue para a esquizofrenia, e ela não aparece em um raio x. Histórico familiar é o principal fator de risco, mas mesmo isso nem sempre diz muito sobre as chances de alguém desenvolver a doença. Por causa disso, não sabemos como preveni-la. Ainda.

Anderson faz parte de um conjunto de quase 3 mil pessoas – entre pessoas saudáveis e doentes, adultas e crianças – que, hoje, ajudam um grupo de médicos brasileiros a entender como a esquizofrenia surge e se desenvolve. A ambição desses pesquisadores é determinar formas de identificar indivíduos em risco ainda na infância, e tratá-los para impedir o surgimento do transtorno. O esforço, coordenado pelo psiquiatra Rodrigo Bressan da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), reúne especialistas das principais universidades do país.

O médico

A ideia de prevenir a esquizofrenia é relativamente nova na história da psiquiatria. Os trabalhos mais promissores começaram a aparecer no final dos anos 1990. Muitos deles vinham da Austrália, do laboratório da professora Alisson Yung. O que Yung e outros cientistas perceberam foi que os primeiros sinais da esquizofrenia surgiam antes do primeiro surto. Os pacientes como Anderson, com esquizofrenia diagnosticada, relatavam ouvir vozes anos antes. Seu quadro, segundo os próprios relatos, se agravava com o tempo: de início, a pessoa se sentia paranoica, por exemplo. Achava que alguém no trabalho queria prejudicá-la. Aos poucos, a leve suspeita se transformava em certeza, e crescia em gravidade até virar o centro da vida da pessoa.

Yung começou a trabalhar com pacientes que relatavam pequenas anormalidades. A psiquiatria chama essas pessoas de indivíduos de ultra alto risco – eles têm chances de, num futuro próximo, desenvolver o transtorno. Mas não estão doentes. Em um estudo de 1999, Yung descreve como acompanhou 20 dessas pessoas por seis meses. No início do projeto, elas apresentavam sintomas atenuados de psicose – algumas escutavam vozes que julgavam ser reais, tal como Anderson antes do primeiro surto. Seis meses depois, oito delas tinham evoluído para quadros de esquizofrenia. Em um ano, entre 25% e 40% dessas pessoas vivenciavam um primeiro episódio psicótico. “O estudo mostrou que é possível identificar indivíduos em risco para desenvolver psicoses”, escreveu Yung na época. “Isso lança as bases para o desenvolvimento de tratamentos que possam evitar ou minimizar os danos causados pelo estabelecimentos da esquizofrenia.”

A partir da Austrália, os estudos de prevenção se espalharam por países de língua inglesa. Encontraram boa acolhida na Inglaterra. Em 2004, o psiquiatra Rodrigo Bressan voltou ao Brasil, depois de concluir seu pós-doutorado no Kings College de Londres.

Bressan é um homem de meia idade e calva generosa. Fala entremeando suas ideias com palavras em inglês. Um projeto de pesquisa bem feito tem um desenho “unique”. Revistas científicas de renome são “super cool”. Sentado à mesa de seu consultório, na bairro paulistano do Itaim Bibi, não disfarçava seu entusiasmo: “O raciocínio da psiquiatria era o do tratamento. Nós esperávamos a pessoa adoecer para tratar”, diz. “Hoje, nós temos consciência de que a doença acontece ao longo da vida”.

Para explicar a esquizofrenia, Bressan usa a metáfora do infarto. Um surto psicótico e um ataque cardíaco têm pontos em comum. Ambos costumam pegar as pessoas de surpresa. A razão para eles acontecerem, no entanto,os precedem em muitos anos. Uma pessoas infarta, entre mais de uma razão possível, porque acumulou gordura em suas artérias. Nesse processo, pesaram seus hábitos – se ela se alimentava bem, se ela fazia exercício – e sua carga genética. A lógica do surto psicótico é semelhante. “As alterações cerebrais, que provocam o surto, vão ocorrendo ao longo da vida”, diz Bressan.

A esquizofrenia é resultado de uma associação de pontos- contra, que se acumulam conforme a pessoa envelhece. O primeiro deles é genético. Ter pais ou parentes próximos com o transtorno não significa que você vá desenvolver a doença, mas representa algum risco. Ao longo dos anos, conforme envelhecemos, nossos cérebros mudam. Algumas estruturas crescem, outras diminuem. Esse processo de amadurecimento saudável pode ser afetado pelo ambiente. Estresse, abuso sexual, uso de drogas na adolescência, desnutrição e uma sequência de outros fatores podem fazer o cérebro desviar do que os médicos chamam de “trajetória ideal de desenvolvimento”. A susceptibilidade de uma pessoa a esses estímulos é definida pela interação de centenas de genes. O acúmulo de alterações cerebrais, com o tempo, provoca o transtorno. “Hoje, entendemos a esquizofrenia como uma doença do neurodesenvolvimento”, diz Bressan.

O problema é que, por enquanto, a ciência não conhece exatamente qual a trajetória ideal do desenvolvimento cerebral. Nem sabe, com certeza, quais os sinais indicativos de que o cérebro saiu da estrada certa – e precisa de tratamento para evitar maiores problemas. A ciência também não sabe como tratar esse cérebro errático. São muitas lacunas. A equipe chefiada por Bressan tenta preencher todas elas.

O grupo que Bressan lidera reúne pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal do ABC (UFABC), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP). Seu trabalho inclui seguir, por anos a fio, a saúde mental de cerca de 2.800 voluntários. Essas pessoas vivem fases diferentes da doença, ou não a desenvolveram. Algumas têm a esquizofrenia já estabelecida, como Anderson. Outras, sofreram há pouco o primeiro episódio psicótico, ou estão em risco para o desenvolvimento do transtorno. A ideia é entender quais as diferenças entre o organismo saudável e o doente.

A etapa mais ambiciosa do projeto de Bressan envolve o acompanhamento de um grupo de crianças e adolescentes, entre sete e quinze anos de idade. Esse trabalho começou em 2009, quando os pesquisadores recrutaram 2.500 crianças em escolas públicas de São Paulo e Porto Alegre. 1.500 delas nasceram em famílias com históricos de doenças mentais. As demais foram escolhidas aleatoriamente. Essas crianças passaram por exames psicológicos e de cognição. Seu material genético foi coletado e sequenciado. 750 delas passaram por exames de ressonância magnética. A cada três anos – pelo tempo que houver dinheiro disponível para a pesquisa – toda essa bateria de procedimentos deve ser refeita. A segunda etapa do projeto foi concluída no final de 2015, e os dados ainda estão em análise.

O objetivo disso é ver como o cérebro de cada criança se desenvolve conforme ela envelhece. É possível que, nesse meio tempo, algumas dessas pessoas desenvolvam transtornos mentais. Os pesquisadores serão capazes de ajudá-las se isso acontecer. E poderão, avaliando as imagens de seus cérebros e os resultados pregressos de seus exames, descobrir se, antes da instalação da doença, já havia sinais de que algo ia mal. Esses sinais são chamados de biomarcadores – são as pistas dadas pelo organismo e funcionam, para as doenças mentais, como o colesterol funciona para problemas cardíacos. Bressan e seus colegas tentam descobrir o colesterol da esquizofrenia – ou, nas palavras deles, encontrar um conjunto de biomarcadores que cumpram esse papel.

Esse tipo de estudo, que acompanha um grande número de pessoas por um longo período de tempo, é chamado estudo de coorte. É um tipo raro e caro de pesquisa. É também do tipo essencial para a psiquiatria. Os médicos sabem que algo muda no cérebro antes de a pessoa se tornar esquizofrênica. E que essas modificações começaram antes da instalação da doença. A maioria dessas conclusões surge da comparação entre o cérebro de uma pessoa doente e o cérebro de uma pessoa saudável. Por isso, são limitadas. O ideal é comparar o cérebro de uma mesma pessoa ao longo da vida. “Em medicina, são os estudos de coorte que permitem descobertas reais”, diz Bressan. “Você só vai saber se cigarro faz mal se acompanhar a pessoa antes de fumar, enquanto fuma e depois, quando ela parar”. O raciocínio para a esquizofrenia é semelhante.

A busca por biomarcadores alia a psiquiatria a áreas do conhecimento das quais, há até pouco tempo, ela mantinha certa distância. Hoje, psiquiatras no mundo todo se beneficiam de avanços das neurociências para entender como o cérebro conecta suas muitas estruturas. E de progressos nas técnicas de sequenciamento de DNA para tentar estabelecer a raiz genética dos transtornos. Esse intercâmbio de disciplinas pode demorar a dar resultados, mas é promissor: “Isso representa uma mudança tectônica, que pode melhorar a vida de de milhões de pessoas”, disse Thomas Insel, diretor do Instituto Nacional de Ciências Mentais dos Estados Unidos, em texto da revista New Scientist. Representa também a emergência de uma nova forma de encarar transtornos como a esquizofrenia. Por anos, esses problemas foram vistos como doenças mentais. “Mas a mente é conceito filosófico”, diz Bressan. “Eu sou médico de um órgão.” É o cérebro que adoece. Tal qual um coração doente, ele também pode ser tratado.

Até agora, os pesquisadores brasileiros identificaram uma enzima que pode ajudar na predissão da doença. E desenvolveram trabalhos com canabidiol, uma substância que protege os cérebros vulneráveis. Suas pesquisas também são importantes por motivos regionais. A esquizofrenia está associada a fatores sociais e culturais – são eles que determinam quais pressões os cérebros vão sofrer, e como essas pressões vão moldá-los. A pesquisa de Bressan é a única realizada em um país em desenvolvimento. É também uma aposta de longo prazo. “Esse é um trabalho de longa duração”, diz Bressan. “Os meninos que estão entrando na escola agora, e serão pesquisadores no futuro, é que vão se beneficiar disso.” Eles e seus futuros pacientes.

As crianças

Numa manhã de domingo, em outubro passado, Idaiane Batista se encolhia em uma cadeira num dos prédios do Hospital das Clínicas de São Paulo. Fazia uma manhã fria, a primeira de uma primavera de temperaturas recordes, e as salas naquele setor eram mantidas abaixo dos 20 ºC. “Precisa ficar frio, para não danificar os equipamentos de ressonância magnética. Mas não precisa ser tão frio assim”, disse Idaiane, estreitando o casaco ao longo do corpo. Um pouco trêmula, ela tentava se concentrar na sequência de cérebros que surgia na tela do computador a sua frente.

Idaiane é uma das pesquisadoras que auxiliam nos exames das crianças voluntárias. Todo domingo, uma das salas do Instituto de Radiologia no hospital das Clínicas é ocupada pela equipe do projeto. O trabalho começa cedo – antes das oito horas, os profissionais estão a postos. Por semana, eles coletam imagens de sete ou nove crianças e adolescentes.

O cérebro na tela pertence a Nicholas Falango, um garoto de 13 anos, longos cabelos e jeito de skatista. “Ontem mesmo levei ele e o irmão para brincar na praça Roosevelt”, diz o pai, Renato Falango, orgulhoso das proezas do menino sobre a prancha. Nicholas tinha onze anos quando um professor falou do projeto conduzido por Bressan e seus colegas. Curioso, quis participar. Os pais o apoiaram: “É um projeto bacana. E a gente precisa estimular a ciência nesse país”, afirma o pai do garoto. Naquela manhã de domingo, o menino já não parecia tão convicto. Calmo, esfregava os olhos com cara de sono. Cada sessão dentro da máquina de ressonância magnética toma 40 minutos do dia da criança. Nesse tempo , são feitas 6 mil imagens por minuto do crânio. A criança tem de permanecer imóvel. É entediante, dá tempo de tirar uma soneca. Quieto, sob um cobertor, Nicholas dormiu.

A infância e a adolescência são fases importantes para o desenvolvimento do cérebro. Até o final da adolescência, o órgão passa por alterações violentas. Se algo negativo acontece nesse processo – maus tratos, abusos, estresse em excesso – os danos podem ser irreversíveis. Os impactos do ambiente começam a afetar o cérebro da criança desde antes de ela nascer. “Sofrimento intrauterino pode impedir a criação de algumas conexões cerebrais”, diz Eurípedes Miguel, coordenador do Instituto Nacional de Psiquiatria para o desenvolvimento Infantil (Inpd), e um dos responsáveis pelo projeto. “Isso interfere no formato do cérebro adulto.”

Até os dois anos, a criança é uma máquina de aprender, e seu cérebro é uma usina de criar novas conexões entre os neurônios. Em pouco tempo, ela passa de um ser completamente dependente dos pais a uma criatura capaz de falar e andar. É um momento também em que a falta dos estímulos adequados, ou a presença de maus tratos, podem provocar danos. “Tem um exemplo típico”, diz Miguel. “Se você tapar um olho nos primeiros dois anos de vida, essa criança vai desenvolver cegueira. Porque ela não vai estimular os neurônios responsáveis pela visão desse olho naquela fase.”

O processo dá nova guinada violenta perto do fim da infância e, a seguir, no fim da adolescência. Nessas ocasiões, o cérebro se livra de estruturas que não são utilizadas. Esse processo é saudável e chamado de poda neuronal ou pruning. “Os momentos de poda neuronal são momentos de grande oportunidade. É quando o cérebro ganha eficiência”, diz Andrea Jackowski, da Universidade Federal de São Paulo. “Mas são também momentos de grande vulnerabilidade.” O mal ocorre quando, por causa de uma associação infeliz de propensão genética e ambiente desfavorável, o cérebro deixa de desenvolver estruturas importantes. Nesses casos, os psiquiatras dizem que o órgão desviou da trajetória ideal de desenvolvimento.

Andrea tenta montar um mapa que mostre qual caminho o cérebro deveria seguir. E que flagre, ainda na infância, essas mudanças de curso. Ela e sua equipe se encarregam de analisar os resultados das ressonâncias magnéticas. Daquele grupo de 2.500 crianças, 750 passaram pelo exame. Se parte delas desenvolver esquizofrenia, seus cérebros dirão quais características, na juventude, apontavam para o problema.

O cérebro de uma pessoa com esquizofrenia é visivelmente diferente do cérebro de uma pessoa saudável: “A gente percebe o aumento dos ventrículos – cavidades cheias de líquido dentro do cérebro”, diz Andrea. “Significa que o cérebro diminuiu.” Antes do estabelecimento da doença, essas diferenças não são tão evidentes. Para chegar a tamanho contraste, visível a olho nu, houve alterações gradativas que se aceleraram com o tempo. Essas alterações individuais são mínimas. Quanto mais cedo na vida elas forem identificadas, maiores as chances de os médicos prevenirem o transtorno.

O volume do cérebro humano está associado à capacidade do órgão de realizar tarefas complexas. Ao longo da vida, conforme amadurecemos, nossos cérebros mudam de tamanho. Algumas regiões diminuem. Quando ocorre no ritmo correto, essa diminuição é natural e saudável. Os estudos de esquizofrenia olham com atenção o volume de duas zonas – a parede cortical (formada por matéria cinzenta) e a substância branca. A substância branca compreende os feixes dos neurônios, que ligam uma região a outra do cérebro. Recebe esse nome porque essas estruturas são cobertas por um lipídio chamado mielina, de coloração rosa claro. É por esses feixes que correm os estímulos elétricos que conectam o cérebro e nos permitem realizar funções diárias. A parede cortical compreende a parte mais externa do cérebro. É nela que se encontram duas estruturas importantes para a esquizofrenia: o lobo frontal – responsável pela nossa capacidade de planejamento e controle de impulsos; e o lobo temporal, responsável pela memória. Durante a primeira infância, a parede cortical é espessa. Em pessoas saudáveis, seu volume diminui cerca de 1% ao ano. É dela que a criança se livra durante a poda neuronal.

A parede cortical diminui à medida que os feixes da matéria branca descobrem como fazer ligações mais eficientes. A conexão entre o lobo temporal e o lobo frontal se aprimora. É como o trânsito de uma cidade: na infância, a informação percorre estradas longas para chegar aonde precisa. O cérebro adulto constrói pontes que encurtam essas distâncias. A criança, que antes chorava por qualquer provocação, aprende a controlar impulsos. A memória melhora e o raciocínio acelera.

O problema é que, nas pessoas com esquizofrenia, a conexão entre o lobo frontal e o temporal permanece imatura. Isso afeta o formato do cérebro. As pesquisas de Andrea mostram que a perda de substância cinzenta, em pessoas com esquizofrenia, pode chegar a até 5% ao ano – em oposição ao 1% esperado em um cérebro saudável. Há também diminuição de substância branca.

As imagens de ressonância magnética ajudam a fornecer pistas de que algo vai mal no cérebro. Elas não podem ser usadas como único critério diagnóstico. Isso porque, por vezes, a forma do cérebro está alterada, mas a função não. Há pessoas cujo organismo consegue compensar a perda anormal de matéria cinzenta.

Por isso, os pesquisadores procuram por pistas adicionais. As primeiras são fornecidas pelo comportamento das crianças. Queda no rendimento escolar e timidez excessiva são indicativos de que ela enfrenta problemas que, se acumulados, podem resultar em transtornos futuros.

Outras pistas podem estar diluídas no sangue. É no sangue que Elisa Brietzke procura respostas. Elisa é uma gaúcha de fala calma. Pesquisadora da Unifesp, é também uma das cientistas mais promissoras do país – em 2015, foi uma das pesquisadoras que ganharam o prêmio L’Óreal para mulheres na ciência. A premiação agracia cientistas que desenvolvam pesquisas com potencial de impacto social.

Ela aposta na capacidade diagnóstica de dois tipos de substância. A primeira é chamada de BDNF. A sigla significa Fator Neurotrófico Derivado do Cérebro, um nomão usado para designar um composto que contribui para o nascimento de neurônios e para a formação de conexões entre eles. “Pessoas saudáveis têm altos níveis de BDNF”, diz a pesquisadora. A teoria atesta que, se cai a quantidade de BDNF no organismo, cai também a capacidade de o cérebro criar essas conexões.

O segundo tipo de substância que Elisa monitora surge no organismo por causa de um fenômeno chamado estresse oxidativo. Toda vez que uma célula produz energia, produz também radicais livres de oxigênio. No geral, o organismo é capaz de digerir esses radicais. Nesse ponto, o corpo de quem tem esquizofrenia – ou está a caminho de desenvolver o transtorno – falha. Isso é ruim porque os radicais livres de oxigênio destroem a membrana que reveste os feixes dos neurônios. Quando isso acontece, surgem as duas substâncias que nos interessam: o Tbars e o PCC. São duas espécies de ácido cuja presença indica que a destruição desses feixes aconteceu.

Esse processo de oxidação acontece na cabeça de todo mundo. Os níveis de BDNF também variam ao longo da vida. Essas ocorrências, por si só, não são problemáticas. A chave é descobrir quais níveis de BDNF, Tbars e PCC são ideais, e quais representam risco. “Todo mundo tem colesterol”, diz Elisa. “Mas, se seu nível ultrapassa 200mg/dl, você aumenta o risco de infarto.” Elisa busca descobrir qual a faixa de segurança: “A gente quer descobrir o nível acima do qual você tem 85% de chances de desenvolver a doença”.

A busca por esses marcadores é importante para desenhar táticas de prevenção. Eles apontam quais crianças devem ser tratadas – cuidar de todas seria pouco produtivo e caro. Marcadores diagnósticos podem ser úteis também para confirmar que um paciente com sintomas sofre de fato com a doença e qual a gravidade do problema. Atualmente, não há testes que auxiliem os médicos na decisão de como conduzir o tratamento: “A gente pede exames apenas como uma forma de eliminar outras possíveis causas”, diz Ary Gadelha. Gadelha é coordenador do Proesq, o serviço de atendimento a pessoas com esquizofrenia mantido pela Unifesp.

Do grupo coordenado por Bressan, Gadelha é quem está mais perto da descoberta de um teste diagnóstico. Ele estudou as variações de nível de uma enzima chamada nudel, uma proteína que interfere em reações importantes para a criação de neurônios. A nudel existe em pequenas quantidades no organismo de indivíduos em ultra alto risco para psicoses. Em em quantidade ainda menor nos indivíduos com o transtorno diagnosticado. O grupo registrou uma patente para a enzima: “Ainda não é uma coisa que dá para usar na prática médica”, diz Gadelha. “Mas nós reservamos o direito de usar essa enzima como teste diagnóstico.”

O remédio

Os médicos tratam esquizofrenia controlando os sintomas da doença. Isso é importante porque impede que os danos se aprofundem. Os antipsicóticos receitados diminuem a produção de uma substância chamada dopamina, liberada em excesso nos cérebros de quem sofre com esquizofrenia. É a dopamina a responsável pela sensação de perseguição que essas pessoas experimentam: “Mas tratar a dopamina é tratar somente a ponta o iceberg”, diz Gadelha. Quando os níveis de dopamina saem do controle, a doença já se instalou. As alterações deletérias na estrutura e nas conexões cerebrais já aconteceram.

Nos últimos anos, a ciência passou a trabalhar com substâncias capazes de proteger o cérebro. Elas fazem pouco em favor de indivíduos já doentes. Mas diminuem a taxa de conversão daquelas pessoas em ultra alto risco, que têm sintomas brandos e ainda não viveram o primeiro surto. Houve resultados animadores com o uso de ômega 3, um lipídio que protege os feixes dos neurônios e impede que eles sejam destruídos pelos radicais livres de oxigênio.

A professora Vanessa Abílio faz experimentos com canabidiol. A sala de Vanessa se resume a um cubículo no quinto andar do prédio da Unifesp, na Vila Mariana, em São Paulo. Percorre-se o espaço com três passos para o lado, dois para a frente. As paredes são cobertas por papéis e livros. Do lado de fora, três estudantes de pós-graduação se apertam em um cubículo ligeiramente maior. A equipe trabalha com modelos animais. Trata-se de um ramo da ciência básica que tenta reproduzir, no bicho, o comportamento humano e as reações dos nossos corpos a dadas substâncias. Fazendo experimentos com uma linhagem de ratos naturalmente hipertensos, Vanessa e seus alunos perceberam que o canabidiol – um princípio ativo da maconha – pode impedir o estabelecimento da psicose.

Ratos naturalmente hipertensos são um tipo de rato criado na década de 1960 por meio de cruzamento genético. Originalmente, são usados para estudar patologias cardiovasculares. Demonstram comportamento característico – na idade adulta, são arredios. Circulam pela gaiola agitados, como se fossem perseguidos. São comportamentos próprios de quem sofre de esquizofrenia.

Vanessa começou tratando os ratos com antipssicóticos convencionais, que controlam a produção de dopamina. Observou que isso atenuava os sintomas. E aumentava a semelhança entre a doença do rato e a doença dos humanos. “Feito isso, nós começamos a testar abordagens inovadoras”, diz Vanessa. “Com o objetivo de prevenir.”

A primeira intervenção consistiu na criação de ambientes enriquecidos para os ratinhos. Em lugar de ser criados em gaiolas normais, alguns ratos foram postos em gaiolas com diferentes tipos de brinquedos e com mais animais. A ideia era observar se esses estímulos tinham potencial protetor – seriam capazes de forçar o cérebro a produzir mais conexões, e evitar ou atenuar os sintomas da doença. Deu certo. Os ratinhos criados em ambientes enriquecidos, Vanessa descobriu, crescem com cabeças mais saudáveis.

Alguns grupos de pesquisa já haviam feito trabalhos com o canabidiol no tratamento de pacientes crônicos. A literatura médica conta que a substância ajuda a amenizar os sintomas de psicose nessas pessoas, se aliado a remédios tradicionais. O canabidiol funciona como um neuroprotetor – reduz o número de neurônios afetados pelo estresse oxidativo. Vanessa passou a usá-lo, sozinho, em ratinhos com 60 dias de vida, na adolescência da espécie. “O efeito fez nossos olhos brilhar”, diz Vanessa. Os ratinhos tratados com canabidiol tornaram-se adultos mais saudáveis. Neles, os sintomas de esquizofrenia surgiram atenuados, ou não surgiram.

Estratégias de prevenção podem melhorar a vida dos pacientes ao evitar perdas decorrentes da doença. Elas ainda contam com o mérito de ter imagem mais positiva no imaginário popular. Os avanços dos tratamentos, nos últimos anos, permitiram que muitas pessoas com esquizofrenia levassem vida normal e produtiva. Mesmo assim, a esquizofrenia ainda vem acompanhada pelo estigma da pessoa delirante e violenta. Precisa mudar: “Há um desafio social de aprender a lidar com essa doença de outra forma”, diz Elisa Brietzke. Os estudos feitos pelo grupo de Bressan apontam para um futuro em que a prevenção poderá ser feita com terapias e suplementos. Eles não sofrem do mesmo estigma – não é remédio tarja preta, é um composto vegetal.

Ver a esquizofrenia como algo prevenível também transforma o transtorno em algo menos assustador. Em países como a Austrália, pioneira no campo, essa ideia influenciou a adoção de políticas públicas e a criação de centros especializados em tratar indivíduos em ultra alto risco. No Brasil, o único exemplo é o Prisma, um serviço criado por Bressan em 2009. Talvez seja hora de expandir: “Segundo a Organização Mundial da Saúde, 25% da população do mundo vai desenvolver algum transtorno mental em algum momento da vida”, diz Bressan. Não é melhor prevenir?

Fonte: Revista Época

Compartilhe: