Muitas delas têm vínculos religiosos e recebem dinheiro público, mas, em dois meses de apuração, a equipe do Fantástico visitou comunidades que oferecem tratamentos que não priorizam a medicina.

Reportagem especial do Fantástico desta semana trouxe a denúncia dos abusos e maus tratos em Comunidades Terapêuticas, muitas das quais recebem financiamento público, como estratégia principal do Ministério da Saúde do atual governo para as políticas de saúde mental no campo da dependência química. Essas comunidades transformaram-se em novos manicômios que ferem os direitos humanos e a dignidade e a honra de pessoas em vulnerabilidade psicológica e social. Vejam a reportagem e assistam ao vídeo no link no final da página.

Castigos físicos e racionamento de comida, segregação e repressão sexual, doutrinação religiosa interferindo no cuidado médico. É assim a rotina em muitas instituições que acolhem dependentes químicos, e recebem dinheiro público. Essas e outras práticas, nas chamadas comunidades terapêuticas, são condenadas por especialistas e pelo Conselho Federal de Psicologia.

Sexta-feira, fim do mês passado, o Fantástico esteve em uma instituição que acolhe dependentes químicos perto da capital baiana.

“Cabelinho quer rapá. Vai procurar um jegue. Você nasceu foi macho, rapaz”, diz o deputado federal pastor Sargento Isidorio, do Avante, o mais votado nas últimas eleições na Bahia.

Ele afirma que pessoas transgênero são diabólicas: “Você deixou o Diabo lhe enganar. Você deixou o médico cortar seu pé de sofá. Ela só pensa que tem bilau. O Diabo diz ao homem que ele pode ser mulher, aí ele se veste todo, bota silicone”.

Com um facão na mão, ele zomba da medicina: “Meu psiquiatra chegou. Seu psiquiatra chegou”.

Durante dois meses de investigação, o Fantástico encontrou este e outros exemplos de descaso pela ciência no tratamento de dependentes químicos em instituições que recebem dinheiro público. Os repórteres estiveram em comunidades terapêuticas que dizem contar com psiquiatras, psicólogos e enfermeiros no atendimento a pacientes.

Mas, num estabelecimento no interior de Minas Gerais, a dependência química pode ser explicada assim: “Pode ser uma maldição. Geralmente os meninos que vêm de fora têm uma coisa de maldição ou de família, hereditária, de pai para filho, de avós, de décima geração”.

Na mesma instituição, internos contaram que cuidam da medicação de outros internos.

“Quaisquer remédios, em especial os tarja pretas mais conhecidos, têm riscos de sedação excessiva, depressão respiratória, até coma e morte”, destaca Débora Gomes Medeiros, psiquiatra e pesquisadora de saúde coletiva – Unicamp.

Em Salvador, monitores e ex-internos falam de uma rotina de castigos: “Três dias de arroz”.

O Fantástico flagrou humilhações nesses locais e, também, repressão à orientação sexual dos dependentes químicos. Esse tipo de conduta no acolhimento de dependentes químicos é condenado por especialistas e pelo Ministério Público, inclusive com denúncias de violação dos direitos humanos.

As chamadas comunidades terapêuticas recebem dependentes em álcool e drogas que têm que se internar por livre e espontânea vontade. Em geral, são instituições privadas, mas sem fins lucrativos. Algumas cobram matrícula e mensalidade, outras oferecem vagas gratuitas, financiadas com dinheiro público ou doações. As comunidades existem no Brasil desde a década de 70 e vêm crescendo muito nos últimos cinco anos.

“Acredita-se que existam hoje perto de 80 mil pessoas acolhidas, e perto de 5 a 6 mil comunidades terapêuticas espalhadas por todo o Brasil. Algumas acabam usando o nome de comunidade terapêutica, mas não são”, afirma Ricardo Valente, psicólogo e diretor da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas.

A federação representa 300 comunidades. As comunidades investigadas pelo Fantástico não são filiadas.

O período de internação e o programa de acolhimento variam de instituição para a instituição, mas, segundo estudiosos, todas partem do mesmo princípio.

“As comunidades terapêuticas brasileiras têm como âncora do seu trabalho o tripé ‘trabalho, disciplina e espiritualidade’”, diz Débora Gomes Medeiros, psiquiatra e pesquisadora de saúde coletiva – Unicamp.

Um tripé questionado pela ciência. “Os transtornos por substâncias são um problema multifatorial com determinantes biológicos, psicológicos e sociais, com uma variedade muito grande entre os casos. Não existe solução que sirva para todos os casos”, afirma a psiquiatra.

Ao longo dos anos, as comunidades terapêuticas têm recebido cada vez mais dinheiro público, repassado por municípios, estados e pela União. Em 2019, somente do Ministério da Cidadania, que é o responsável pelo programa de comunidades terapêuticas, saíram mais de R$ 81 milhões. No ano passado, o valor chegou a R$ 134 milhões, um aumento de 65%.

Nesse mesmo período, na rede de atendimento psicossocial a dependentes de álcool e drogas do SUS, os chamados CAPS AD, o aumento foi de 11%.

Veja o que dizem os citados:

Em nota, a Desafio Jovem Maanaim afirma que “recebeu quase 40 fiscalizações determinadas pelo Ministério Público Federal e pelo Conselho Federal de Farmácia”, que não encontraram irregularidades. Sobre o assassinato ocorrido na comunidade, a Maanaim diz que o motivo foi “briga de gangue rival, externa”. Anota diz também que a comunidade conta com psiquiatra e “psicólogos e psicoterapeutas que desenvolvem trabalhos baseados em narcóticos anônimos”.

O governo da Bahia diz que os investimentos na Fundação Doutor Jesus seguem a lei. Afirma que “não vai admitir qualquer ação que atinja a dignidade e o direito das pessoas”, e que possui uma forte política de inclusão e combate ao preconceito contra pessoas LGBTQIA+. Segundo o governo, a denúncia será apurada.

O pastor Sargento Isidório diz que é um colaborador voluntário da Fundação Doutor Jesus, principalmente na orientação pastoral que busca restaurar vidas e famílias. Segundo ele, perguntas técnicas e administrativas devem ser respondidas pela instituição, que não se manifestou.

A comunidade Fazenda da Paz enviou nota ao Fantástico afirmando que a “terapia do trabalho”, criticada na reportagem por médicos e estudiosos, é associada à “aprendizagem profissional para que os/as acolhidos/as possam ser reintegrados à sociedade qualificados profissionalmente e com possibilidade de serem inseridos no mercado de trabalho”. A nota diz ainda que no dia 31 de março de 2022 a diligência realizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) na comunidade foi encerrada. Como foi mostrado na reportagem, em janeiro o MPT identificou problemas relacionados ao trabalho de internos na Fazenda da Paz, o que resultou na elaboração de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). A entidade assegura que hoje “não há nenhuma irregularidade em relação à Fazenda da Paz”. A nota diz também que “o dinheiro gerado com as vendas dos produtos e todos os recursos recebidos são investidos integralmente para execução de seus fins estatutários e manutenção das ações e projetos sociais da Fazenda da Paz”.

Procurados pelo Fantástico, a Comunidade Acolhida, Marcelo Sarmento Mendes, a comunidade Desafio Jovem ETM e o Ministério da Cidadania não se manifestaram.

Assista à íntegra da reportagem no vídeo neste link, com mais explicações de profissionais e depoimentos de pacientes, que contam casos de desrespeito e práticas abusivas.

Fonte: G1 – Fantástico – TV Globo
Foto: mapa das comunidades terapêuticas retirado do site do Ministério da Cidadania

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